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IMAGEM: Egyptische danseres in een tent, met muzikanten en toeschouwers (1863) - Dançarina egípcia em uma tenda, com músicos e espectadores. CRIADOR: Willem de Famars Testas. FONTE: www.rijksmuseum.nl |
Escrevo este ensaio pensando na porção transgressora da dança, a qual se dá, em boa parte, devido à sua intrínseca sensualidade. Por ser naturalmente sensual, a dança percorre um trajeto de impacto social que a faz ser vista, em um extremo, como manifestação do sagrado, enquanto resplandecência da carne, e no outro, como prelúdio à luxúria, condenação. Mover os punhos espiraladamente, circular o quadril em volta do seu centro, desenhar curvas no ar com as costelas, deixar o pescoço se esticar para trás e puxar uma grande inclinação da coluna, tudo isso é fazer rodar a correia das sensações, e não apenas em quem se mexe, mas também em quem assiste. Penso no caso específico da mulher. Nestas questões relacionadas ao gênero feminino.
No Brasil, somos acostumados a ver mulheres rebolando, peles à mostra, seios tremendo, glúteos e pernas. No mundo inteiro sabe-se da existência do carnaval brasileiro e seus corpos quase nus. Pelas ruas, silhuetas são visíveis. Nos programas de auditório, moças dançam balançando a pelve até o chão. Adentra no Brasil a moda da pole dance. Em grandes cidades academias de ginástica passam a oferecer essa modalidade de dança, onde se deve aprender a rodopiar em volta de um mastro, a la stripper. Dentro dessa erotização dos movimentos corporais nos corpos femininos, muitas questões se encontram. Por um lado, há o fato de que a liberdade de expressão é legítima. Por outro, existe a problemática da objetificação da mulher, pois para muitos homens, ela se torna, de modo generalizado, uma espécie de mercadoria na estante, exposta para escolha e consumo.
O corpo da mulher brasileira e sua dança vivem soltos, mas não de modo hegemônico, pois em algumas instâncias culturais encontramos a intolerância para com a sensualidade da dança, e a discriminação da mulher que se revela livremente sensual. Em tempos passados, esse preconceito era maior. As dançarinas de cabaré das primeiras décadas do século XX muitas vezes tinham suas profissões confundidas com a prostituição, apesar de serem coisas distintas. As atrizes que fizeram parte do movimento precursor do teatro no Brasil também eram rotuladas pela mentalidade conservadora como mulheres da vida, ou damas vulgares.
O corpo da mulher brasileira e sua dança vivem soltos, mas não de modo hegemônico, pois em algumas instâncias culturais encontramos a intolerância para com a sensualidade da dança, e a discriminação da mulher que se revela livremente sensual. Em tempos passados, esse preconceito era maior. As dançarinas de cabaré das primeiras décadas do século XX muitas vezes tinham suas profissões confundidas com a prostituição, apesar de serem coisas distintas. As atrizes que fizeram parte do movimento precursor do teatro no Brasil também eram rotuladas pela mentalidade conservadora como mulheres da vida, ou damas vulgares.
Em países de culturas ainda estruturalmente machistas e religiosamente fundamentalistas, tais intolerância e discriminação são bem mais densas, estando arraigadas de modo generalizado na sociedade. Na cultura árabe tradicional, por exemplo, os corpos das mulheres são cobertos por panos, embalados por tecidos e ocultação. Quando nesse contexto a pele feminina encontra-se livre, navegando em ondas sinuosas de movimento, arma-se uma imagem concessivamente nefasta, que só pode ser aceita socialmente em círculos fechados, próprios do mundo masculino. O cavalheiro pode apreciar essa transgressão. A dama não. A mulher que se presta à função de dançarina é considerada uma mulher diferente. Está moralmente abaixo da boa esposa-mãe, e deve ser tratada socialmente de modo diferenciado. A ela é reservado um lugar peculiar. Ela não pertence ao pudor, mas também não exerce a venda do sexo. Ela a figura que propicia a necessária desmedida moderada dos sentidos corpóreos, o voyeurismo, a excitação controlada. Para ela é difícil casar-se, pois não é considerada uma pretendente apropriada. Em troca, a dançarina circula pelo mundo íntimo masculino, recebe presentes, cortesias. Pode conquistar certo status, possui uma específica mobilidade. Ela é, ao mesmo tempo, a exceção para a liberdade e a escória da dignidade.
Isso me faz lembrar a época da inquisição, na Idade Média, e seu pensamento católico corporalmente opressivo, no qual o corpo é prisão da alma, a mulher é a vilã bíblica e a sensualidade é pecado. Nessa conjuntura, cala-se a dança feminina. A mulher só deveria mover-se ritmadamente durante os passos de um comportado bailado, e nas ocasiões premeditadas. No entanto, pensando que o impulso expressivo muitas vezes nasce do deserto, visualizo uma moça vestida em uma túnica branca, sob a luz de um candil, na intimidade do seu pequeno quarto. Ela acabou de se banhar em uma bacia e prepara-se para dormir. Sem suas pesadas roupas diurnas ela se sente mais leve. Se aproxima da parede de pedras onde no alto há uma estreita janela, e observa o brilho da lua. Ela pressente a liberdade. Sente vontade de mover seu corpo. Inspira o ar e o retém. Vira-se para o interior do quarto e solta-se no espaço. Moral multitemporal da história: a dança da mulher é um canto da força feminina. Ela pode ser mal-compreendida e reprimida, mas não pode ser impedida.