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Cena final do filme Luzes da Cidade, de 1931. |
Imagino um dia diferente: comunicar-me apenas corporalmente, pela linguagem dos gestos. Entendendo gesto como plasticidade corporal de manifestação visual, e dentro disso, com um sentido amplo: os gestos dos olhos (os segredos do olhar), os gestos da coluna (mesmo que sutis), os gestos dos dedos das mãos (os dedos e suas danças), os gestos dos joelhos, dos pés...
O cinema mudo explorou esse mundo gestual. Um olhar de Chaplin falou mais que um texto comprido. A dança bebeu na pantomima. As escalas gestuais de François Delsarte inspiraram precursores da dança moderna. O que o gesto pode nos ensinar? Ele pode ser furioso ou gentil, pode ser nítido ou confuso. Pode adormecer, pode acordar. Como estar atento para escutá-lo? Será que meu inconsciente pode falar por mim por meio dos meus gestos? O que meus gestos podem me ensinar a respeito de mim mesma? E nos meus sonhos noturnos, o que querem de mim meus gestos? O corpo fala é o título do clássico livro de Pierre Weil e Roland Tompako.
Os monges que fazem voto de silêncio, me parece, vivem também uma economia de gestos - o silêncio dos gestos. Ao contrário desse admirável silêncio místico gestual, imagino como seria uma canção gestual cotidiana criada espontaneamente durante todo o percurso de um dia especial. Se quero expressar um 'sim!', como 'digo'? Se quero explicar que estou pensando, como faço? Se quero comunicar que aquela árvore é linda, o que se passa? E se emendo um gesto no outro, criando um refrão?
Admiremos um bebê, seu corpo, seus gestos: como ele todo é expressivo. Em um recém nascido, as caretas que ele constantemente realiza em seu rosto amassado nos mostram que o gesto vem de dentro. Ele sente um desconforto físico e sua face reage, exterioriza. Ele se comprime, torce a boca, movimenta o braço, aperta os olhos. Mas ele também reage gestualmente ao que vem de fora, e isso nos faz ver que o gesto também nasce no outro. Lembro do filme A Guerra do Fogo, dirigido por Jean-Jacques Annaud. Homens pré-históricos precisam partir à procura do fogo, porque não sabem fazê-lo manualmente. Não existe uma língua em cena, mas existe uma linguagem de sons e de gestos. O raciocínio e as sensações estão lá: nas sobrancelhas, nos lábios, nos ombros, nas pernas, no pescoço dos personagens. Eles agacham, correm, se paralisam. Sentem medo, admiração, alegria. As tentativas de entender a incompreensível fala de outra tribo se refletem em seus rostos, que se modificam expressivamente, em constante movimento. Estranha atração e admiração pelo mundo que surge a partir daquele que é diferente. A inteligência vai brotando da afeição.
Para a minha música gestual de um dia, eu poderia me inspirar no homem pré-histórico que existe em mim, no bebê que existe em mim, na dançarina que existe em mim. Tudo ficaria imbuído de uma atmosfera de novidade. Você se mexe, eu escuto. Eu me movo, você me ouve. Nós iríamos conversar sem palavras. Poderíamos nos tocar. Talvez, a necessidade de estar atento para compreender a minha mensagem aumente em você sua receptividade e sua perspicácia. Talvez, reparar como você hesita, ao procurar uma resposta, e como expande o peito e inclina a cabeça, aumente em mim minha capacidade de transitar afetos.