quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Os sapatinhos vermelhos e a dança da entropia

            
Cartaz da edição francesa do filme musical
The Red Shoes (1948),
de Michael Powell e Emeric Pressburger. 
            Dançar sobre um chão de brasas como tortura ou punição seria um destino aterrorizante. Nos desenhos animados motivados no velho oeste norte-americano, vemos personagens desafortunados que são obrigados a saltar de um pé a outro para se livrar das balas deflagradas pelos gatilhos dos seus carrascos. Enquanto eles saltitam, o sádico se diverte. Pensando nessa conjuntura de sofrimento atrelado a movimento, me pergunto se frases como "O fulano conseguiu sair, mas o ciclano dançou" teriam a ver com o chão de brasas ou de pólvora. Elas trazem uma carga semântica negativa para a palavra 'dança', atrelando-a a uma autodestruição externamente imposta. Esse sentido de infortúnio e de desgraça amalgamado na dança involuntária é o elemento principal de uma velha história, um antigo conto conhecido como Os sapatinhos vermelhos ou As sapatilhas do Diabo
            A analista junguiana e contadora de histórias Clarissa Pinkola Estés, em seu livro Mulheres que correm com os lobos (editora Rocco) conta antigas histórias, todas relacionadas à jornada do desenvolvimento da psiquê feminina, e desenvolve uma leitura de suas simbologias, das forças arquetípicas que carregam e de suas mensagens ou ensinamentos. Um rico universo de entrelinhas vai se abrindo ao se ler tais interpretações. No livro, Estés apresenta uma versão germânica da história dos sapatos vermelhos. Segundo Estés, existem variadas versões para esse conto, havendo também versões deturpadas, que desviam os elementos narrativos, conduzindo a mensagem para diferentes ideologias. Nas diversas versões mais comprometidas com o sentido original da história, Estés identificou vários elementos em comum, e percebeu que elas transportam um mesmo esqueleto e uma mensagem semelhante ao fim. Sua personagem principal é uma garota órfã e pobre, que vivia pelas ruas dos vilarejos e pelos bosques, catando alimentos e sobrevivendo a diversas provações que as circunstâncias de sua vida lhe traziam. 
            Como a garota havia crescido sozinha, teve que descobrir por conta própria maneiras de se proteger e de conseguir aquilo que precisava. Ela espreitava o perigo, escondia-se de ameaças, e tinha uma curiosidade instintiva, mas igualmente na mesma quantidade, seus instintos a faziam muito prudente. Ela decidiu que iria costurar sapatos para proteger seus pés, pois assim seria capaz de caminhar sem precisar contornar alguns obstáculos, podendo atravessar locais que tivessem o chão espinhoso. Ela escolheu a cor vermelha para seus futuros sapatos, pois adorava as framboesas e suas tonalidades. E assim, foi guardando na sua trouxa pedaços de couro vermelho encontrados no lixo de sapateiros. Quando viesse o inverno, ela não sofreria tanto por conta dos pés gelados. Com o tempo, conseguiu juntar vários pedaços de couros vermelhos, e fabricou seus próprios sapatos. Ela os amava. Eles estavam sempre nos seus pés. Aos olhos dos outros, os sapatos poderiam ser considerados muito grosseiros e inacabados, mas para a garota, eles eram perfeitos.
            Um dia, quando a menina estava andando distraída por uma estrada, passou por ela uma carruagem dourada, que parou logo a frente. De lá desceu uma velha e rica senhora, que havia se compadecido da menina, e que queria adotá-la, levá-la para sua casa e tratá-la como sua filha. A velha disse para a menina que em sua casa ela teria água quente para o banho, uma cama macia para dormir e todas as refeições do dia. Além de boa instrução. A garota aceitou a proposta da senhora e entrou em sua carruagem.    
            Chegando na casa da rica senhora, a menina foi banhada, teve seu cabelo penteado, ganhou um lindo vestido e se esbanjou de comer. No dia seguinte, ela perguntou por sua roupa e sapatos, e a velha senhora disse que os tinha jogado ao fogo da lareira, por eles estarem imundos e serem demasiados grosseiros, mas que a menina não precisava se preocupar, pois teria muitas roupas e não lhe faltariam sapatos novos. Essa notícia tornou a menina muito triste, porque gostava de sua velha roupa, e seus sapatos feitos à mão eram para ela como um tesouro. Passavam-se os dias e a tristeza da menina aumentava, porque ela sentia falta de saltitar pelas estradas, de respirar o ar dos bosques, e de admirar seus sapatos vermelhos, sua criação. Desde que chegou na casa da velha senhora, ela tinha que ficar sentada, aprendendo a ler e a bordar.
            No sábado, a rica senhora disse à garota que iria levá-la a um sapateiro, para que ela escolhesse um sapato, pois no domingo sairiam de casa para a missa na qual a menina deveria ser crismada, já que ela tinha idade apropriada para isso. As duas então saíram de casa e subiram na carruagem. Chegando na sapataria, havia muitos sapatos bonitos, mas os olhos da garota se fixaram em um par de sapatos vermelhos que estavam no alto da vitrine. Ela apontou para os sapatos vermelhos e o sapateiro pegou-os, para que ela experimentasse. Na missa de crisma não podia-se usar sapatos vermelhos, mas como a velha senhora eram um pouco cega, ela não percebeu a cor dos sapatos e não fez objeções em relação à escolha da menina. O sapateiro piscou para a menina, e disse: "Ótima escolha!". No dia seguinte, a menina foi à igreja juntamente com a rica senhora, e calçando seus novos sapatos.
            Durante toda a missa, a menina foi acompanhada por olhares de reprovação. Todos achavam um absurdo ela usar sapatos vermelhos reluzentes dentro da igreja. Até mesmo os ícones pregados nas paredes e as estátuas de anjos e santos fecharam as sobrancelhas para seus sapatos. A menina entretanto nem reparou tais olhares, pois havia ficado a missa inteira olhando para seus sapatos novos, admirando aquele vermelho pulsante. Na saída da missa, havia um soldado encostado na porta da igreja. Ele usava uma tipoia no braço, tinha um cachimbo na boca e uma barba ruiva bem grande. Quando a menina passou por ele, ele falou "Que belas sapatilhas!" e se ofereceu para tirar o pó dos sapatos da menina. Ele então se abaixou e tamborilou com os dedos uma musiquinha na sola dos sapatos da menina, e deu uma piscada para ela. A velha senhora ficou ainda mais indignada com a menina, e os olhares de reprovação se tornaram ainda mais intensos. A menina porém, ao começar a andar para a carruagem, deu um rodopio, e fez ali mesmo alguns passos de dança, sentindo certa liberdade tomar conta de seu corpo. No entanto, a menina não entrou na carruagem, e saiu dançando para o outro lado da rua, e adentrou o descampado dançando. O cocheiro da carruagem correu atrás da menina, e conseguiu apanhá-la. Dentro da carruagem, ele e a velha senhora tentaram conter as pernas da menina, e se desdobraram para tirar os sapatos dos seus pés. Foram muitas tentativas. Os pés da menina não paravam de dançar, até mesmo quando estavam voltados para o ar eles se mexiam. Foi caótico, mas enfim, a velha e o cocheiro conseguiram tirar os sapatos dos pés da menina, e a carruagem seguiu seu destino.
            Chegando à casa da velha senhora, a menina foi advertida para não mais calçar aqueles sapatos. No dia seguinte, a velha foi novamente ao sapateiro com a menina, e comprou para ela um belo par de sapatos pretos. Mais uma semana se passou, e a menina sentia-se triste. Sentia falta dos bosques, não gostava dos sapatos pretos, e espiava os sapatos vermelhos no armário. No domingo seguinte, quando a velha chamou-a para irem à missa, a menina, sabendo que a velha tinha problema de vista, calçou novamente os sapatos vermelhos. Os olhares de reprovação durante a missa foram ainda mais fortes. Pessoas, ícones e estátuas reprovavam o comportamento da menina. Ao sair da igreja, o soldado de longa barba ruiva lá estava, encostado no portão. Ele piscou para a garota e falou "Não esqueça de ficar para o baile!". Ao ouvir essas palavras, a menina deu um rodopio e fez alguns passos de dança ali mesmo. Primeiro dançou uma gavota, depois uma csárdás, e em seguida, giros intensos de valsa, em intermináveis sucessões. A velha estava assombrada. A menina não parou de dançar. Ela se sentia livre, e não reparou que sua dança estava tornando-se desgovernada. Ela saiu descampado abaixo dançando, e o cocheiro não conseguiu apanhá-la dessa vez. 
            A garota chegou ao vilarejo vizinho dançando, e percebeu que estava longe demais de sua casa. Ela tentou virar-se para a esquerda, mas os sapatos a fizeram virar para a direita. Ela tentou ir em linha reta, mas os sapatos a fizeram dançar em círculos. A menina ficou apavorada. Os sapatinhos vermelhos conduziam seu corpo, e ela não tinha descanso. Ela passou dançando na frente de uma igreja, se agarrou com força à porta da igreja, enquanto seus pés tentavam levá-la. Ela pediu misericórdia. Ali apareceu um anjo, que disse a ela: "Não, não há misericórdia para você. Você desdenhou dos santos. Você irá dançar até que sua pele seque e sobre apenas suas vísceras. Você baterá três vezes na porta das casas, pedindo socorro, mas as pessoas, ao espiarem que é você quem bate à porta, não abrirão. Dancem sapatos vermelhos, vocês devem dançar!"  A menina desesperou-se e os sapatos foram conduzindo-a para dentro da floresta escura. Encostado em uma árvore, lá estava o soldado de barba ruiva. Ele disse: "Que belas sapatilhas!" e a menina apavorou-se ainda mais. Ela atravessou a floresta dançando. Dançava de noite e de dia, sob chuva e sob sol.
            Um dia, seus sapatos a levaram à floresta onde morava o carrasco do vilarejo, e assim que ela entrou dançando na casa dele, o machado pendurado na parede começou a tremer. O carrasco, ao vê-la, disse: "Você sabe quem eu sou, vá embora!" Mas a menina pediu a ele: "Corte os meus sapatos dos meus pés, por favor!" Ele então cortou fora as fivelas do sapato, mas eles não caíram. A menina tentou tirá-los. Enquanto dançava em cima de um pé, puxava o sapato do outro pé, mas era difícil, porque o pé que estava em sua mãos continuava dançando, sem parar. A menina tentou tirar o sapato do outro pé, mas aconteceu o mesmo. Desesperada então, a menina gritou para o carrasco: "Corte fora meus pés! Minha vida não vale nada mesmo!" e o carrasco assim o fez. Após o golpe do machado, os sapatinhos vermelhos com os pés da menina dentro saíram dançando pela floresta. A garota, decepada e caída no chão, ficou olhando os sapatos indo ao longe, até sumirem de vista. 
            O trágico fim dessa história faz sua interpretação começar de trás para frente: o que significa a perda dos pés? Podemos pensar que seja a perda da capacidade de movimento, da capacidade de seguir em frente. Ter os pés decepados é, simbolicamente, perder a base. Essa perda carrega consigo a perda da independência. Estés, quando analisa o conto em seu livro, desenvolve algumas interpretações. Na interpretação que se dá nas linhas abaixo, estou mesclando pontos de vista próprios às ideias de Estés.
            A pobreza da garota corresponde a uma condição de ser iniciante, de ter-se ainda muito a aprender, e muito a conquistar. Sua condição de órfã chama a atenção para uma personalidade que busca uma identidade própria, que não é guiada por modelos prontos, mas que tenta criar seu próprio estilo de ser. Seus sapatos feitos à mão são um primeiro resultado concreto de seus esforços criativos, de sua força expressiva, de sua compreensão do mundo. Representam uma materialização de seus conhecimentos, sendo fruto de sua inteligência livre, e de uma vida instintiva vibrante. O vermelho chama o sentido de vitalidade e desejo, mas também de alerta, pois o sangue dá vida quando corre dentro do corpo, e traz a morte quando jorra para fora do corpo. Fazer sapatos vermelhos na puberdade é aprender a respeito dessa polaridade do vermelho no momento em que se inicia a vida reprodutiva, quando o organismo feminino jovem tornou-se capaz de gestar em seu ventre. Seria uma condição ideal: iniciar-se na vida sensual feminina com a capacidade do discernimento acionada. Os sapatos vermelhos feitos à mão representam a necessidade de saber discernir o vermelho bom do vermelho destrutivo. A carruagem dourada seria a ofuscação do que tem real valor por aquilo que é valorizado socialmente em uma perspectiva de vida materialista. A idade avançada da senhora é a representação da experiência que vem com o tempo, dos aprendizados que só o tempo proporciona. No caso da senhora dessa história, a experiência de vida se deu apenas no mundo das convenções, e assim, a sabedoria que deveria guiar a menina foi deturpada. A promessa da senhora rica é uma cilada, é a tentação de trocar o risco pelo conforto inerte. Representa as garantias, a segurança proporcionada pelo convencional, uma alternativa ao medo do desconhecido. A casa da rica senhora é o cotidiano criativamente asséptico, orientado por valores materialistas vazios de originalidade. Representa modelos baseados no supérfluo, e uma educação castradora, que adestra instintos e ignora o singular. A queima dos sapatos feitos à mão é a destruição da persona criativa, é uma poda violenta na vida expressiva, no nascimento de uma autêntica individualidade. Os sapatos vermelhos do sapateiro representam a tentativa social de modelar o impulso singular padronizando-o; de tapear sua fome, e assim ofertar um substituto para o instinto criador. Representam a permissão para a manifestação de um falso caráter expressivo, o exótico adestrado e estéril. A ânsia de usar os sapatos vermelhos a qualquer custo representa a forte necessidade de reencontrar os instintos, a individualidade criativa que fora perdida. A igreja preconceituosa e o anjo inquisidor representam as instituições que trabalham na manutenção do status quo, de uma estrutura social que controla  e condena o desviante, o novo, a linha de fuga. O soldado é o diabo da história, e representa a bestialidade como ausência de prudência; a tentação de rebelar-se estupidamente; a vontade de divertir-se a qualquer custo. O prazer causado pelas primeiras danças dos sapatos vermelhos significa o deixar-se cegar ingenuamente por prazeres que na realidade são vampirescos, que sugam energias. A desvirtuada imitação de liberdade na qual se lança a garota é vazia, e a ilusão de preenchimento gera carências múltiplas. A dança final desgovernada é a própria entropia que reside em comportamentos viciosos autodestrutivos frutos da descontrolada necessidade de se saciar a sede por algo vibrante. Nesses comportamentos, a euforia revela-se torturante, e conduz ao fundo do poço.
            Diante da entropia da dança dos sapatos vermelhos, encontramos um sentido degenerativo para a dança. Isso me faz pensar que a conotação negativa da palavra 'dança' ("Xi, o fulano dançou.") pode estar atrelada a essa imagem secular, ou talvez milenar, do corpo cadavérico que deve dançar por condenação, castigo ou punição. Sem poder parar e sem repouso, sua dança é sua própria degradação.