Nas teias das coincidências e conexões que compõem o tecido do nosso universo, alguma relação que seja, no mínimo, inspiradora, pode ser percebida entre a dança e o beijo. Esses dois elementos falam a linguagem do imprevisto, da desenvoltura, do incandescente. Uma verdadeira dança e um verdadeiro beijo retornam para o ser a sensação do fluir, do dissolver-se. Fazem com que o tempo se torne suspenso como uma estalactite, gotejando frações de segundos ou grupos de horas sem que essas durações sejam percebidas. Liberam no organismo hormônios transformadores do estado corporal. Altera-se a frequência cardíaca, a respiração e a percepção. Como experiências que compartilham aspectos em comum, o beijo e a dança dialogam. Existem de um modo retrorressonante no cotidiano, nos sonhos, na imaginação. Uma dança pode levar a um beijo, e um beijo pode levar a uma dança.
Quando se dança a dois,
na inquietude do desejo crescente, sente-se o beijo esperado antes que ele de
fato aconteça – o beijo começou na dança, e antes mesmo de começar. Ou ainda, a
dança nasce solitária e contente, como prelúdio ao beijo que está por chegar.
Podemos imaginar Roland Barthes se referindo a isso em seu discurso amoroso:
"Antes mesmo de você surgir trazendo um beijo, eu já começo a dançar”.
Mas é certo que nem toda
dança leva a um beijo. Nem mesmo se pensarmos nas danças apaixonadas: existem
danças desejantes, porém contidas, que retêm o beijo; danças tímidas, que se
contentam com a ideia do beijo; danças projetistas, que se apoiam na
insinuação. Existem também danças que forçam um beijo, e que por isso, o
uníssono do beijo não chega a ocorrer. E, além disso, a dança pode ser
interrompida exatamente naquele curto instante que antecede o beijo.
Se viermos pelo outro
lado da estrada, tomando essa relação na direção contrária, temos que o
acontecimento de um beijo pode desencadear uma dança, de modo
que amalgamadas passadas funcionem como uma celebração a dois, autonomamente
musicada – ritual espontâneo e tradutor de um afeto indescritível. No entanto,
a dançada celebração pós-beijo também é passível de ocorrer individualmente.
Podemos imaginar, por exemplo, que após um beijo empolgante seguido de um 'até
logo', somos levados a pegar o caminho de volta para casa dançando.
Pensando por uma
perspectiva menos romântica, é bem possível considerar que uma dança a dois, consequente
de determinado beijo, seja, sem rodeios, simplesmente um bailado caliente; reflexo comum da pulsão da
libido, e concretização de microrritmos fisiológicos frenéticos, apressados e
famintos.
Também se pode conceber
que o beijo leve à dança não apenas enquanto um desencadeamento de ações
ocorridas em sucessão, dentro de um mesmo momento, mas também, de modo afastado
no tempo. Ou seja, o beijo pode levar à dança por meio de uma reverberação ou
ressonância proveniente do mundo da memória. Nesse caso, a sucessão acontece de modo expandido no tempo, impulsionada por uma provocação ocorrida nas terras
distantes de Mnemosine. Isso significa que a lembrança de um beijo pode levar
ao surgimento de uma dança – movimentos repercutidos de episódio compartilhado
no passado, e dançados a sós no presente. Tal dança seria solitária apenas
no plano visual, pois na esfera do sensível, ela transporta o outro, sua
inventada representação, e também, as transmutações das mil faces da percepção
outrora vivenciada.
E... além de tudo, por vezes ocorre do beijo se misturar à dança,
formando os dois uma substância híbrida, tornando-se inseparáveis.
A dança cênica sempre trouxe a ideia do beijo dos amantes para os
palcos. Beijos foram insinuados por meio de gestuais, foram projetados
simbolicamente em trocas de olhares, metaforizados em diversos contatos
corporais. A dança contemporânea leva literalmente o beijo para a cena. Exemplos de coreografias incríveis, onde se dança beijando, podem ser vistos no filme Tempus
Fugit (coreografado por Sidi Larbi Cherkaoui e parte do elenco da companhia
Balé Contemporâneo da Bélgica) e na obra Le Salon (da Peeping Tom companhia de dança-teatro). Na primeira, temos uma espécie de bela adormecida contemporânea. Nas areias de um oásis arábico, ela abandonou o véu que lhe oculta a face e os cabelos, e caída no chão em um sono profundo, é despertada pelo beijo de um homem, retribuindo-o sem parar, durante um tango visceral. Ela parece ser conduzida pela voracidade resultante do desejo de libertar-se de uma opressão sufocante. Na segunda coreografia, um casal, em meio à atribulada vida de uma peculiar família, se beija enquanto embala o sono do pequeno filho. Eles unem o cotidiano à eletricidade, e ninam a dois a criança, em uma dança que precisa controlar o calor delirante do beijo que nunca quer terminar.
Como finalização, vale lembrar que o beijo também surge na cena dançante enquanto desfecho coreográfico, ou final apoteoticamente simples e sensual, como é o caso de um dueto do Grupo Corpo, dançado ao som da música Como Presiento (de Ernesto Lecuona, parte da trilha da montagem Lecuona). Após ritmados enlaces físicos algo desarmoniosos, o casal desencontrado se acerta em um beijo pontual e retilíneo.
O beijo e a dança: os dois existem no movimento, por causa do
movimento e para o movimento.
Deixo aqui o link para a parte inicial do filme Tempus Fugit no Youtube: