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A coreógrafa e dançarina Anne Teresa De Keersmaeker em Violin fase, performance de dança parte da obra Fase: four movements to the music of Steve Reich (1982). |
Em sua versão mais originária, como arte que acontece no momento presente, e pela presença física do artista, a dança consiste em um fenômeno efêmero. Passageira no tempo e passageira do tempo, ela parte do alcance dos nossos olhos, uma vez finalizada a apresentação cênica. Se momentos atrás estávamos diante de um território poético criado pela dança, agora tudo o que enxergamos é o espaço da cena vazio, não mais ocupado pelo corpo ou corpos dançantes. No entanto, essa mesma dança que acabou de acabar-se é também permanência em potencial. Ainda que não fique concretamente no espaço onde ocorreu, ela pode ficar em nós, estabelecendo-se ao estilo ondas no mundo metamórfico da nossa memória. Uma vez refluxo, encontra-se novamente acesa.
Na atualidade, com o uso de câmeras de alta definição e boas ilhas de edição, podemos fazer ótimos registros de obras coreográficas. Assim, é possível ir novamente até a dança, a fim de revisitá-la. Mas o que se passa no lembrar da dança é algo diferente: é ela que vem até nós, navegando como recordação, retornando na memória pelo rastro que outrora deixara. Se fomos fisgados por alguma dança, tenha sido ela conhecida ao vivo ou por meio de uma filmagem, poderemos receber sua visita, em um ressurgimento enquanto dança-lembrança. Desse modo, o componente fugaz da dança, ao invés de denegri-la, lhe imprime uma sofisticação peculiar. E para seus amantes, o desvanecer de sua passagem traz para suas vidas um significado a mais para a palavra saudade.
Laurence Louppe, em pequeno trecho de
seu livro Poética da dança contemporânea (Orfeu Negro, 2012), fala da efemeridade da dança tomando
como parte do título da discussão a expressão "rituais de
desaparecimento". Ao decorrer da leitura, torna-se claro que o
desaparecimento da cena, quando esta se finaliza enquanto acontecimento, não dever ser tomado como sinônimo de aniquilação, mas sim, como
promessa de regresso. É por esse viés que Louppe traz para sua reflexão a questão da transição da
presença da obra para sua ausência, no que concerne à reverberação da poética
artística no mundo sensível de seu espectador. O instante da cena não mais
existe, acabou-se. Mas fragmentos da cena emergem e submergem na memória inquietante
de quem o testemunhou. Para Louppe, a passagem do visível para o invisível é
algo essencial ao fenômeno cênico da dança. E pactando com esse pensamento, podemos dizer que a lembrança que se tem da
dança é a mais rica herança que ela pode nos deixar.
Advertências, porém, precisam ser feitas quanto ao uso imoderado da palavra 'efêmero', opina Louppe, pois na esteira rolante do tempo industrial, essa palavra foi
banalizada em muitos discursos da dança. Seu significado fora desviado, levando-a para longe de
seu sentido reluzente. As críticas de Louppe apontam para o censo comum e sua condenação da dança a uma "privação da memória".
Para Louppe, tal condenação não passa de um velho tabu, que liga o sentido de
efemeridade ao uso empobrecido da noção de esquecimento, arrancando do efêmero sua
beleza particular. Desse modo, o efêmero da dança acabou sendo associado à
impotência e à incapacidade "para sobreviver e enfrentar o
tempo".
Na contramão da lógica industrial do tempo, a fim de resgatar a alteridade
do esquecimento e a legitimidade de sua presença no processo
da divagação do efêmero, Louppe traz para suas ideias o historiador, filósofo e teólogo francês Michel de Certeau, quando
transcreve que "não se deve fazer da memória uma entidade em si, e do esquecimento
uma simples passagem negativa que enfraquece a integridade da memória. Na
verdade, é o esquecimento que domina e explora, por sua conta, a passagem do
tempo."
Esta outra lógica do esquecimento me faz deduzir que a força de reverberação da dança reside em
ser presença no fluxo que torna revolto o esquecimento. Ela deixa um rastro, e
fica como trilha de marcas em nossa memória. Algo perfumado, uma fragrância que
extrapola o ar, e adentra; um perfume no imaginário. Suas inesperadas ou
delicadas entranças no nosso mundo das lembranças portam a ele cores de sabores
de movimento; propiciam a graça da visão fugaz de um relâmpago de um pedaço de
dança. E, o que é mais lindo na trança lembrança/esquecimento dessa espécie de
memória: ela faz surgir novas danças, novos raios de movimento. Inspira,
recria, modela ou origina desejos. E para aqueles que constroem danças, ela
acende a nascente da criação. A dança lembrada alimenta a nova dança. E todo
artista que bebeu nesse tipo de fonte tem profunda gratidão por aqueles que
tocaram sua inspiração.
Assim como trouxe Certeau, Louppe traz o poeta francês renascentista Pierre de
Ronsard para sua reflexão, lembrando que ele qualificava as rosas como algo efêmero. Isso me faz pensar na
dança cênica como uma flor. Uma rosa rara e efêmera. Desabrocha e logo passa.
No entanto, adentrou a memória, e assim, se não é promessa, é possibilidade de
retorno, e de transformação.
Anne Teresa De Keersmaeker, coreógrafa da companhia belga Rosas, ao final de uma peculiar performance de seu solo Violin Fase, (de 1982, e parte do trabalho Fase: four movements to the music of Steve Reich) deixa, literalmente, o rastro de sua dança no chão forrado de areia. Por onde ela passou ficam marcas que juntas lembram uma espécie de flor. O carimbo desta rosa bem desabrochada guarda o eco pulsante dos passos dos seus pés, e não apenas destes, mas também o eco dos traçados desenhados por seus braços no ar, o eco de seus pequenos, ligeiros e precisos saltos, de seus giros e desenvoltura contagiante. Deixo aqui o link para essa inspiração: De Keersmaeker cercada por árvores em Violin Fase: