quinta-feira, 10 de abril de 2014

A dança da serpente



Cobra indiana Naja naja
NatMis181 © Florilegius/The British Library Board
Fonte: The British Library

            Linha sinuosa que se desloca no chão ou na água. Letra ‘S’ em movimento.  Fio vivo enroscado em um galho ou a si próprio no chão. Número ‘8’ do infinito replicado nas ondulações do longilíneo escamoso. Face em ponta triangular apontando para a direção do deslocamento. Inexistência de ouvidos. Escuta de vibrações. Olhos de visão limitada. Pálpebras transparentes constantemente fechadas. Inúmeras vértebras. Inúmeras costelas em curva sutil. Trocas de pele. Ausência de membros. Escamas. Língua para sentir cheiros. Temperatura regulada pelo ambiente. Sangue frio.
            Exercendo fascínio sobre o homem desde tempos imemoriais, com seu movimento enigmático e plasticidade hipnotizante, as serpentes povoaram e povoam o imaginário de diversas culturas. Em mitologias, contos e histórias, foram muitas as ocasiões onde estiveram associadas com energias maléficas, situações destrutivas e propósitos deslegítimos. Medusa, Hidra, Edquidna, Apep, Basilisco, Boiuná e a serpente do jardim do Éden são alguns desses personagens. Tanto em versões quase inteiramente antropomórficas, tal qual a Medusa com seus cabelos-cobras, quanto em personagens inteiramente zoomórficos, as serpentes são representadas como símbolos da aniquilação, do terror, da dissimulação e da enganação. Trazem conflitos, guerras, mortes assustadoras, traições e provações à vida dos heróis e das populações que os cercam. Além de desempenharem a 'maldade' em papéis centrais nas tramas, as serpentes também surgem como coadjuvantes importantes nos antigos enredos trágicos, entrando fatalmente no caminho de pastores, ninfas e guerreiros. Peçonhentas e tidas como vilãs naturais, seu veneno lança para outros mundos personagens repentinamente mortos, tombados ao chão em curtas frações de tempo. Foi assim que Orfeu perdeu sua Eurídice para o reino de Hades.
            No entanto, em algumas mitologias, a serpente também é associada a divindades boas, relacionando-se com aspectos positivos e benéficos à vida, como: abundância, fertilidade, força, renovação, cura, proteção, educação e verdade. Dentre alguns representantes desta outra ala das serpentes sobrenaturais estão Renenutet, Angita, Oxumaré, Ratumaibula e Ningišzida. Este último, personagem masculino da mitologia mesopotâmica, se manifestava como serpente com cabeça humana. Protetor da verdade e guardião do conhecimento, garantia a prosperidade dos cultivos e a vitalidade das ervas. Quando se retirava da terra em viagem para o submundo, os cultivos secavam e a vegetação morria. Era então que vinham os períodos de estiagem e de infertilidade do solo. Na China, as serpentes e seus parentes imaginários, os dragões, são adorados ainda hoje. A celebração da natureza parece ser o primeiro comprometimento dessas personagens, sendo o vínculo com a humanidade uma consequência desse propósito primeiro. Por conta disso, talvez, elas nem sempre estejam a favor dos homens. No Brasil, por exemplo, temos a figura do Boitatá, a cobra de fogo que perambula pelos campos combatendo incêndios. Transparente e por vezes incandescente como brasa, ele persegue qualquer ser humano que tenha visto atear fogo nas matas.
            Devido ao mistério que exala, a serpente tem sido associada à sabedoria. É imagem marcante e registrada nas trilhas da construção do conhecimento das sociedades. Está no bastão símbolo da medicina e em cajados símbolos de doutrinas místicas. Para a arte da dança, não haveria de ser diferente – essa figura tão rica e inspiradora pode também ser encarada como uma espécie de mestra do movimento. Thérèse Bertherat, a francesa criadora da antiginástica, em seu livro As estações do corpo (editora Martins Fontes, 2001; originalmente lançado em 1985 em francês – Les saisons du corps), toma a mobilidade da serpente como ponto de partida para provocar reflexões a respeito da importância da saúde das musculaturas dorsais e póstero-mediais do corpo humano. Bertherat assim o faz sob o argumento de que toda a musculatura da serpente é posterior, ou seja: está inteiramente nas suas costas sua capacidade de mover seu corpo ‘axialado’ de modo tão eficiente. Bertherat joga com a ideia de que descendemos das serpentes, por parecermos demais com elas em nossa estrutura axial óssea e muscular. Ela lembra, por exemplo, que nós serpenteamos a coluna discretamente toda vez que caminhamos. Na contradireção da hipertrofiação muscular, lema do bodybuilding tão em voga ainda hoje, Bertherat iniciou na década de 1970 sua campanha particular a favor de músculos mais maleáveis e menos rígidos. O objetivo é que os músculos se tornem tonicamente saudáveis; que sejam capazes de cumprir com graciosidade, ou talvez seja melhor dizer, com economia de esforço, seu papel nas cadeias sinérgicas do movimento. O lema é a liberdade de movimento. Steve Paxton, o criador do contato-improvisação, movido também por esse mesmo desejo em seus estudos, coloca no foco das questões a riqueza sensitiva que vem do dorso. Em sua abordagem técnica denominada Material for the spine (Material para a coluna), ele explora os movimentos provenientes de músculos posteriores internos e externos, objetivando trazer a consciência para “o lado escuro do corpo”; informando a mente a respeito das sutilezas prodigiosas realizadas ali, e que ainda não tenham sido devidamente notadas ou valorizadas.
            O dorsal-detalhismo dinâmico de Paxton e o reencontro com o livro de Bertherat, e sua alusão às costas da serpente, tornaram-me curiosa sobre a vida cinética desses répteis. Fui então colher alguns dados. Impactaram-me coisas simples e até mesmo óbvias, como o fato de que o esqueleto de uma serpente compõem-se apenas de crânio, maxilar, vértebras e costelas. Foi inusitada a descoberta de que os órgãos em pares, como os rins, por exemplo, ficam enfileirados e não lado-a-lado, como em nós humanos. A quantidade de vértebras nas serpentes está na casa centesimal. Para além do número 100, pode-se chegar até perto do número 500! Com tal quantidade de segmentos vertebrais, quantas maravilhas do movimento pode uma serpente! Nós humanos, também devemos toda nossa mobilidade axial à nossa coluna e suas musculaturas. Com nossas 24 vértebras, mais o sacro e o cóccix, que consistem em grupos de vértebras calcificadas em peças únicas, temos um eixo estável e flexível; plástico, funcional e expressivo. Pronto para o movimento. Isso ocorre porque são somados ao longo da coluna, de vértebra a vértebra, os pequenos movimentos articulares relacionados a cada encontro de duas vértebras. Ou seja, uma única articulação vertebral pouco pode em termos de amplitude de movimento, mas todas juntas podem bastante coisa. Ainda assim, é claro, não chegamos nem aos pés das serpentes. E isso, não apenas por causa da diferença quantitativa dos segmentos do eixo, mas também por conta de outro fator: nós temos membros, e elas não. A ausência de patas deixa livre o movimento da serpente, ao longo de toda sua longelineidade. E ainda existe a diferença das costelas. As das serpentes são linhas arredondadas, mas que não chegam a fechar uma espécie de semicircunferência, como o que ocorre em nós (nossas alças de balde que navegam em semicírculo da coluna até o esterno). Cada costela da serpente se projeta lateralmente para fora do eixo em uma curva sutil, assemelhando-se a um pequeno pedaço do contorno de uma grande circunferência. Imagino que isso ajude a serpente a manter-se sobre seu ventre, ao invés de ficar rolando de um lado para o outro.
            Ao ver-se uma serpente movendo-se, muitas histórias podem ser criadas, pois elas acendem o imaginário. As dançarinas indianas praticantes de um gênero de dança de origens milenares, o Bharatanatyam, recontam corporalmente, no número da dança da serpente (Naag Padam), história da mitologia indiana, onde uma naja deslizante se faz alerta e seduz. Ao som da música e da voz cantada repetidamente de modo energizante, as mãos das dançarinas ondulam-se no espaço em formato de concha, e armam um bote acima da cabeça. Os olhos sempre abertos e os joelhos prontos para trabalhar a qualquer hora, em subidas e descidas ao solo. A flexibilidade do dorso é constantemente exercida, com longas e amplas extensões de coluna. Quando estas dançarinas encantam seu público ao realizar a dança da serpente, acredito que estejam totalmente conectadas com a serpente que existe dentro delas próprias – a coluna e seu poder ancestral. Como uma serpente que acabou de trocar de pele, ela viceja e se liberta.


Deixo aqui o link para uma apresentação da dançarina de Bharatanatyam Radhini Sivadharanda na dança da serpentehttp://www.kalaimanram.co.uk/VideoView.aspx?Spec=Videos5