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La petite langue de Colombine (A pequena língua de Columbina) (1915), de Konstantin Somov. São Petersburgo, Museu Russo. |
A intensa escritora Clarice
Lispector, em uma das vezes em que se voltou para suas memórias de criança, trouxe
para nós uma expressão curiosa, que também deu nome à história onde se encontra.
O conjunto de palavras refere-se a uma categoria peculiar de estado de
espírito: a “felicidade clandestina”. Em uma narração nada pueril envolvendo
estados psicológicos de duas personagens juvenis, Lispector confronta a
delicadeza de um afeto desfavorável e incondicional com uma maquiavélica observação
da angústia. Faz um contraponto entre a resignação do querer e o prazer de
decepcionar; entre a vulnerabilidade da espera e o sadismo da postergação.
O que se passa é que a garota
Clarice desejava ardentemente um livro de histórias, o qual pertencia a uma
colega da escola. A colega prometeu emprestá-lo para Clarice, e a convidou para
ir apanhá-lo em sua casa. Quando Clarice chegou à sua porta, ela respondeu que
o livro ainda estava com outra menina que havia pegado emprestado. Antes de
fechar a porta, a colega falou para Clarice voltar no dia seguinte. E assim,
vinte e quatro horas depois, Clarice estava novamente à porta da menina, mas
obteve resposta igual à do dia anterior. E dessa maneira, em um padrão de
previsibilidade, foram se sucedendo dias e dias. Como Clarice era de família pobre,
e não tinha condições de comprar o livro, ela se resignava a manter viva sua vã
esperança, e todos os dias retornava à casa da menina para ouvir o “volte
amanhã”. Certa vez, a mãe da menina descobre a trama, e sabendo que o livro
nunca havia sido emprestado a ninguém por sua filha, ela o pega e o dá a
Clarice. Então, no desenlace final da crônica, enquanto volta para casa
carregando o livro abraçado ao peito, a garota Clarice é tomada por uma deslumbrante
felicidade. Uma alegria afetuosa profunda a invade sofisticadamente em ritmo
crescente, como uma desenfreada mancha de sol avançando no chão ao meio-dia. Mas
Clarice estava marcada por sucessivas desilusões, e mantém a felicidade acesa
apenas da pele para dentro. Nada deixa transparecer para o mundo. Quer manter
em segredo seu sentimento, para que ele fique seguro. Vive uma felicidade
clandestina. Está caminhando em êxtase, e experimenta um esplendor. Porém, suas
passadas são controladas. Ao invés de acelerar em uníssono com a satisfação,
ela se mantém vagarosa. Ao invés de vibrar, cristaliza o frenesi. É portadora
de um frágil tesouro, e o transporta. Naquele momento, o portal da fantasia, aquilo
pelo que tanto esperara, e que finalmente encontrava-se em suas mãos – conforme
enfatiza a narradora Clarice adulta – não era mais um livro, mas sim o amante
retornado do exílio.
Nessa narração, Lispector abre
mais uma vez as persianas da intimidade psicológica individual, revelando
frequências inquietas de aspirações e desassossegos solitários. Essa tonalidade
clandestina da felicidade vivida pela garota Clarice me intrigou, e me fez
divagar sobre uma possível clandestinidade referente à dança. Pergunto-me sobre
como seria a dança clandestina. Tal qual Lispector, parto da perspectiva da
interioridade, do universo criativo vivido em nós mesmos, em nosso próprio
espaço-tempo. Imagino uma dança que se carrega dentro, e que o mundo não pode
enxergar. Que percorre como vulto o imaginário, e chega a quase desaguar nos
gestos. Da qual pouco se sabe. Procuro sua silhueta. Como será sua face
escondida por trás da viseira negra? Será ela a própria pulsão do desejo de
dançar? Será ela o esboço do movimento que procuro e ainda não conheço? Ou, de
modo mais delineado, não será ela a coreografia que está sendo concebida na
imaginação solitária de seu criador, como manifestação artística ainda ou para
sempre em latência?
Dando continuidade a esse jogo de
elucubrações, jogo o foco das questões sobre essa última hipótese, tomando para
breve reflexão a dança que é concepção no mundo subjetivo da criatividade. É espectro.
É avistada ao longe. Surpreende chegando muito perto. Some. Retorna e esvai-se
novamente. Aparece à noite no sono, frequentando um sonho. Surge ao meio-dia, como
devaneio na rotina. É fantasia. É clandestina. Está ali, e não está. Essa dança
na neblina das ideias, que incita o desejo de manifestação e dá forma aos
rascunhos da poética gestual, é de natureza transgressora, pois remexe no baú
dos hábitos do movimento. Debruça-se no parapeito da janela da novidade. Mas, embora
possa ser fortemente dinâmica em seus deslocamentos, por meio de aparições
repentinas na mente, também se arrasta lentamente pelo tempo não linear da criação.
Às vezes, ao arrastar-se, percorre valas profundas, tornando-se aparentemente
ausente; germinação despercebida. Nessas valas profundas do terreno criativo o
tempo pode ser oco, ralentado, movediço.
Em contraponto a esta dança
clandestina experienciada no conceber artístico, me reporto à existência de
outras espécies de danças clandestinas. Procuro tipos que tenham velocidades
diferentes, visualidades diferentes. Partindo disso, encontro a dança que é
clandestina porque clandestinos são os dançarinos. Nesse caso, a intocabilidade
da identidade daquele que dança é o que dá clandestinidade à dança. Véus
cobrindo o rosto, máscaras camuflando feições, um capuz por toda a cabeça. A
clandestinidade aqui é o próprio ambiente onde pousa a dança. Imagino
dançarinas em alguma tenda no deserto, com a face ocultada por um tecido fino. Elas
dançam rodeadas por velas que iluminam o breu da noite sem lua. Chacoalham
pulseiras prateadas em seus pulsos, e combinadamente marcam suas passadas pelo
barulho de pequenos sinos presos aos tornozelos. Misteriosas como personagens
de contos árabes milenares, não podem ser captadas pelas sondas do registro das
características congênitas, pois suas fisionomias faciais encontram-se
clandestinas. “Quem são essas mulheres que dançam?” “Como se vestem no início
do dia?” Visualizo bailes renascentistas de alguma província inglesa. As
máscaras tornam as danças a dois mais enigmáticas. As maçãs do rosto estão
escondidas. Os passos são comportados, e seguem a música de métricas herméticas,
rastreando linhas geometricamente distribuídas no espaço. Os corpos pouco ou
quase nada se tocam. As saias arrastam pelo chão. Os olhos se encontram. Chego
até Romeu e Julieta. Será que ali a clandestinidade das feições do visitante desconhecido
não foi pavio para o desejo incontestável?
Seguindo pistas da dança clandestinamente
dançada, chego ainda ao carnaval dos fantasiados. Primavera de alegres, inatos
e desapegados criadores. Aqui, encontramos a clandestinidade festiva como possibilidade
de extrapolação das condutas convencionais. As roupas são trocadas por
fantasias, e na expressividade desses personagens desgarrados de enredos ecoa
um hino mudo, submerso a outros sons, mas comunicador: “Somos todos iguais –
todos somos fantasias, não somos reais”. Esse coro que não se escuta é resquício
longínquo de origens dionisíacas. Cercadas de plumas, purpurinas, capas, flores
e babados, suas carnavalescas danças clandestinas são alegorias voluptuosamente
desgarradas do imaginário. Se observadas atentamente, vicejam ancestralidade. Carregam algum traço das eufóricas transgressões do passado, onde séculos atrás era driblado o status quo,
quando escravos eram temporariamente libertados, e nobres desapoderados, para
que durante os dias da festa, fantasias fossem trazidas para a realidade.
Tudo isso me faz perceber que a dança está entranhada na sociedade como feixes nervosos que atravessam sua arquitetura não apenas longitudinalmente, mas transversalmente também. E seja como festejo de uma improvisada
persona provisória, como estratégia do mistério, ou como ritmo da criatividade, ela também se dá de modo clandestino, com um poder peculiar de encantamento. Porque a dança é amiga da
fantasia, e é irmã, filha ou mãe da felicidade.
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