quinta-feira, 10 de abril de 2014

A dança da serpente



Cobra indiana Naja naja
NatMis181 © Florilegius/The British Library Board
Fonte: The British Library

            Linha sinuosa que se desloca no chão ou na água. Letra ‘S’ em movimento.  Fio vivo enroscado em um galho ou a si próprio no chão. Número ‘8’ do infinito replicado nas ondulações do longilíneo escamoso. Face em ponta triangular apontando para a direção do deslocamento. Inexistência de ouvidos. Escuta de vibrações. Olhos de visão limitada. Pálpebras transparentes constantemente fechadas. Inúmeras vértebras. Inúmeras costelas em curva sutil. Trocas de pele. Ausência de membros. Escamas. Língua para sentir cheiros. Temperatura regulada pelo ambiente. Sangue frio.
            Exercendo fascínio sobre o homem desde tempos imemoriais, com seu movimento enigmático e plasticidade hipnotizante, as serpentes povoaram e povoam o imaginário de diversas culturas. Em mitologias, contos e histórias, foram muitas as ocasiões onde estiveram associadas com energias maléficas, situações destrutivas e propósitos deslegítimos. Medusa, Hidra, Edquidna, Apep, Basilisco, Boiuná e a serpente do jardim do Éden são alguns desses personagens. Tanto em versões quase inteiramente antropomórficas, tal qual a Medusa com seus cabelos-cobras, quanto em personagens inteiramente zoomórficos, as serpentes são representadas como símbolos da aniquilação, do terror, da dissimulação e da enganação. Trazem conflitos, guerras, mortes assustadoras, traições e provações à vida dos heróis e das populações que os cercam. Além de desempenharem a 'maldade' em papéis centrais nas tramas, as serpentes também surgem como coadjuvantes importantes nos antigos enredos trágicos, entrando fatalmente no caminho de pastores, ninfas e guerreiros. Peçonhentas e tidas como vilãs naturais, seu veneno lança para outros mundos personagens repentinamente mortos, tombados ao chão em curtas frações de tempo. Foi assim que Orfeu perdeu sua Eurídice para o reino de Hades.
            No entanto, em algumas mitologias, a serpente também é associada a divindades boas, relacionando-se com aspectos positivos e benéficos à vida, como: abundância, fertilidade, força, renovação, cura, proteção, educação e verdade. Dentre alguns representantes desta outra ala das serpentes sobrenaturais estão Renenutet, Angita, Oxumaré, Ratumaibula e Ningišzida. Este último, personagem masculino da mitologia mesopotâmica, se manifestava como serpente com cabeça humana. Protetor da verdade e guardião do conhecimento, garantia a prosperidade dos cultivos e a vitalidade das ervas. Quando se retirava da terra em viagem para o submundo, os cultivos secavam e a vegetação morria. Era então que vinham os períodos de estiagem e de infertilidade do solo. Na China, as serpentes e seus parentes imaginários, os dragões, são adorados ainda hoje. A celebração da natureza parece ser o primeiro comprometimento dessas personagens, sendo o vínculo com a humanidade uma consequência desse propósito primeiro. Por conta disso, talvez, elas nem sempre estejam a favor dos homens. No Brasil, por exemplo, temos a figura do Boitatá, a cobra de fogo que perambula pelos campos combatendo incêndios. Transparente e por vezes incandescente como brasa, ele persegue qualquer ser humano que tenha visto atear fogo nas matas.
            Devido ao mistério que exala, a serpente tem sido associada à sabedoria. É imagem marcante e registrada nas trilhas da construção do conhecimento das sociedades. Está no bastão símbolo da medicina e em cajados símbolos de doutrinas místicas. Para a arte da dança, não haveria de ser diferente – essa figura tão rica e inspiradora pode também ser encarada como uma espécie de mestra do movimento. Thérèse Bertherat, a francesa criadora da antiginástica, em seu livro As estações do corpo (editora Martins Fontes, 2001; originalmente lançado em 1985 em francês – Les saisons du corps), toma a mobilidade da serpente como ponto de partida para provocar reflexões a respeito da importância da saúde das musculaturas dorsais e póstero-mediais do corpo humano. Bertherat assim o faz sob o argumento de que toda a musculatura da serpente é posterior, ou seja: está inteiramente nas suas costas sua capacidade de mover seu corpo ‘axialado’ de modo tão eficiente. Bertherat joga com a ideia de que descendemos das serpentes, por parecermos demais com elas em nossa estrutura axial óssea e muscular. Ela lembra, por exemplo, que nós serpenteamos a coluna discretamente toda vez que caminhamos. Na contradireção da hipertrofiação muscular, lema do bodybuilding tão em voga ainda hoje, Bertherat iniciou na década de 1970 sua campanha particular a favor de músculos mais maleáveis e menos rígidos. O objetivo é que os músculos se tornem tonicamente saudáveis; que sejam capazes de cumprir com graciosidade, ou talvez seja melhor dizer, com economia de esforço, seu papel nas cadeias sinérgicas do movimento. O lema é a liberdade de movimento. Steve Paxton, o criador do contato-improvisação, movido também por esse mesmo desejo em seus estudos, coloca no foco das questões a riqueza sensitiva que vem do dorso. Em sua abordagem técnica denominada Material for the spine (Material para a coluna), ele explora os movimentos provenientes de músculos posteriores internos e externos, objetivando trazer a consciência para “o lado escuro do corpo”; informando a mente a respeito das sutilezas prodigiosas realizadas ali, e que ainda não tenham sido devidamente notadas ou valorizadas.
            O dorsal-detalhismo dinâmico de Paxton e o reencontro com o livro de Bertherat, e sua alusão às costas da serpente, tornaram-me curiosa sobre a vida cinética desses répteis. Fui então colher alguns dados. Impactaram-me coisas simples e até mesmo óbvias, como o fato de que o esqueleto de uma serpente compõem-se apenas de crânio, maxilar, vértebras e costelas. Foi inusitada a descoberta de que os órgãos em pares, como os rins, por exemplo, ficam enfileirados e não lado-a-lado, como em nós humanos. A quantidade de vértebras nas serpentes está na casa centesimal. Para além do número 100, pode-se chegar até perto do número 500! Com tal quantidade de segmentos vertebrais, quantas maravilhas do movimento pode uma serpente! Nós humanos, também devemos toda nossa mobilidade axial à nossa coluna e suas musculaturas. Com nossas 24 vértebras, mais o sacro e o cóccix, que consistem em grupos de vértebras calcificadas em peças únicas, temos um eixo estável e flexível; plástico, funcional e expressivo. Pronto para o movimento. Isso ocorre porque são somados ao longo da coluna, de vértebra a vértebra, os pequenos movimentos articulares relacionados a cada encontro de duas vértebras. Ou seja, uma única articulação vertebral pouco pode em termos de amplitude de movimento, mas todas juntas podem bastante coisa. Ainda assim, é claro, não chegamos nem aos pés das serpentes. E isso, não apenas por causa da diferença quantitativa dos segmentos do eixo, mas também por conta de outro fator: nós temos membros, e elas não. A ausência de patas deixa livre o movimento da serpente, ao longo de toda sua longelineidade. E ainda existe a diferença das costelas. As das serpentes são linhas arredondadas, mas que não chegam a fechar uma espécie de semicircunferência, como o que ocorre em nós (nossas alças de balde que navegam em semicírculo da coluna até o esterno). Cada costela da serpente se projeta lateralmente para fora do eixo em uma curva sutil, assemelhando-se a um pequeno pedaço do contorno de uma grande circunferência. Imagino que isso ajude a serpente a manter-se sobre seu ventre, ao invés de ficar rolando de um lado para o outro.
            Ao ver-se uma serpente movendo-se, muitas histórias podem ser criadas, pois elas acendem o imaginário. As dançarinas indianas praticantes de um gênero de dança de origens milenares, o Bharatanatyam, recontam corporalmente, no número da dança da serpente (Naag Padam), história da mitologia indiana, onde uma naja deslizante se faz alerta e seduz. Ao som da música e da voz cantada repetidamente de modo energizante, as mãos das dançarinas ondulam-se no espaço em formato de concha, e armam um bote acima da cabeça. Os olhos sempre abertos e os joelhos prontos para trabalhar a qualquer hora, em subidas e descidas ao solo. A flexibilidade do dorso é constantemente exercida, com longas e amplas extensões de coluna. Quando estas dançarinas encantam seu público ao realizar a dança da serpente, acredito que estejam totalmente conectadas com a serpente que existe dentro delas próprias – a coluna e seu poder ancestral. Como uma serpente que acabou de trocar de pele, ela viceja e se liberta.


Deixo aqui o link para uma apresentação da dançarina de Bharatanatyam Radhini Sivadharanda na dança da serpentehttp://www.kalaimanram.co.uk/VideoView.aspx?Spec=Videos5

segunda-feira, 10 de março de 2014

Dança clandestina



La petite langue de Colombine (A pequena língua de Columbina) (1915), de Konstantin Somov.  
São Petersburgo, Museu Russo.

A intensa escritora Clarice Lispector, em uma das vezes em que se voltou para suas memórias de criança, trouxe para nós uma expressão curiosa, que também deu nome à história onde se encontra. O conjunto de palavras refere-se a uma categoria peculiar de estado de espírito: a “felicidade clandestina”. Em uma narração nada pueril envolvendo estados psicológicos de duas personagens juvenis, Lispector confronta a delicadeza de um afeto desfavorável e incondicional com uma maquiavélica observação da angústia. Faz um contraponto entre a resignação do querer e o prazer de decepcionar; entre a vulnerabilidade da espera e o sadismo da postergação.
O que se passa é que a garota Clarice desejava ardentemente um livro de histórias, o qual pertencia a uma colega da escola. A colega prometeu emprestá-lo para Clarice, e a convidou para ir apanhá-lo em sua casa. Quando Clarice chegou à sua porta, ela respondeu que o livro ainda estava com outra menina que havia pegado emprestado. Antes de fechar a porta, a colega falou para Clarice voltar no dia seguinte. E assim, vinte e quatro horas depois, Clarice estava novamente à porta da menina, mas obteve resposta igual à do dia anterior. E dessa maneira, em um padrão de previsibilidade, foram se sucedendo dias e dias. Como Clarice era de família pobre, e não tinha condições de comprar o livro, ela se resignava a manter viva sua vã esperança, e todos os dias retornava à casa da menina para ouvir o “volte amanhã”. Certa vez, a mãe da menina descobre a trama, e sabendo que o livro nunca havia sido emprestado a ninguém por sua filha, ela o pega e o dá a Clarice. Então, no desenlace final da crônica, enquanto volta para casa carregando o livro abraçado ao peito, a garota Clarice é tomada por uma deslumbrante felicidade. Uma alegria afetuosa profunda a invade sofisticadamente em ritmo crescente, como uma desenfreada mancha de sol avançando no chão ao meio-dia. Mas Clarice estava marcada por sucessivas desilusões, e mantém a felicidade acesa apenas da pele para dentro. Nada deixa transparecer para o mundo. Quer manter em segredo seu sentimento, para que ele fique seguro. Vive uma felicidade clandestina. Está caminhando em êxtase, e experimenta um esplendor. Porém, suas passadas são controladas. Ao invés de acelerar em uníssono com a satisfação, ela se mantém vagarosa. Ao invés de vibrar, cristaliza o frenesi. É portadora de um frágil tesouro, e o transporta. Naquele momento, o portal da fantasia, aquilo pelo que tanto esperara, e que finalmente encontrava-se em suas mãos – conforme enfatiza a narradora Clarice adulta – não era mais um livro, mas sim o amante retornado do exílio.
Nessa narração, Lispector abre mais uma vez as persianas da intimidade psicológica individual, revelando frequências inquietas de aspirações e desassossegos solitários. Essa tonalidade clandestina da felicidade vivida pela garota Clarice me intrigou, e me fez divagar sobre uma possível clandestinidade referente à dança. Pergunto-me sobre como seria a dança clandestina. Tal qual Lispector, parto da perspectiva da interioridade, do universo criativo vivido em nós mesmos, em nosso próprio espaço-tempo. Imagino uma dança que se carrega dentro, e que o mundo não pode enxergar. Que percorre como vulto o imaginário, e chega a quase desaguar nos gestos. Da qual pouco se sabe. Procuro sua silhueta. Como será sua face escondida por trás da viseira negra? Será ela a própria pulsão do desejo de dançar? Será ela o esboço do movimento que procuro e ainda não conheço? Ou, de modo mais delineado, não será ela a coreografia que está sendo concebida na imaginação solitária de seu criador, como manifestação artística ainda ou para sempre em latência?
Dando continuidade a esse jogo de elucubrações, jogo o foco das questões sobre essa última hipótese, tomando para breve reflexão a dança que é concepção no mundo subjetivo da criatividade. É espectro. É avistada ao longe. Surpreende chegando muito perto. Some. Retorna e esvai-se novamente. Aparece à noite no sono, frequentando um sonho. Surge ao meio-dia, como devaneio na rotina. É fantasia. É clandestina. Está ali, e não está. Essa dança na neblina das ideias, que incita o desejo de manifestação e dá forma aos rascunhos da poética gestual, é de natureza transgressora, pois remexe no baú dos hábitos do movimento. Debruça-se no parapeito da janela da novidade. Mas, embora possa ser fortemente dinâmica em seus deslocamentos, por meio de aparições repentinas na mente, também se arrasta lentamente pelo tempo não linear da criação. Às vezes, ao arrastar-se, percorre valas profundas, tornando-se aparentemente ausente; germinação despercebida. Nessas valas profundas do terreno criativo o tempo pode ser oco, ralentado, movediço.
Em contraponto a esta dança clandestina experienciada no conceber artístico, me reporto à existência de outras espécies de danças clandestinas. Procuro tipos que tenham velocidades diferentes, visualidades diferentes. Partindo disso, encontro a dança que é clandestina porque clandestinos são os dançarinos. Nesse caso, a intocabilidade da identidade daquele que dança é o que dá clandestinidade à dança. Véus cobrindo o rosto, máscaras camuflando feições, um capuz por toda a cabeça. A clandestinidade aqui é o próprio ambiente onde pousa a dança. Imagino dançarinas em alguma tenda no deserto, com a face ocultada por um tecido fino. Elas dançam rodeadas por velas que iluminam o breu da noite sem lua. Chacoalham pulseiras prateadas em seus pulsos, e combinadamente marcam suas passadas pelo barulho de pequenos sinos presos aos tornozelos. Misteriosas como personagens de contos árabes milenares, não podem ser captadas pelas sondas do registro das características congênitas, pois suas fisionomias faciais encontram-se clandestinas. “Quem são essas mulheres que dançam?” “Como se vestem no início do dia?” Visualizo bailes renascentistas de alguma província inglesa. As máscaras tornam as danças a dois mais enigmáticas. As maçãs do rosto estão escondidas. Os passos são comportados, e seguem a música de métricas herméticas, rastreando linhas geometricamente distribuídas no espaço. Os corpos pouco ou quase nada se tocam. As saias arrastam pelo chão. Os olhos se encontram. Chego até Romeu e Julieta. Será que ali a clandestinidade das feições do visitante desconhecido não foi pavio para o desejo incontestável?
Seguindo pistas da dança clandestinamente dançada, chego ainda ao carnaval dos fantasiados. Primavera de alegres, inatos e desapegados criadores. Aqui, encontramos a clandestinidade festiva como possibilidade de extrapolação das condutas convencionais. As roupas são trocadas por fantasias, e na expressividade desses personagens desgarrados de enredos ecoa um hino mudo, submerso a outros sons, mas comunicador: “Somos todos iguais – todos somos fantasias, não somos reais”. Esse coro que não se escuta é resquício longínquo de origens dionisíacas. Cercadas de plumas, purpurinas, capas, flores e babados, suas carnavalescas danças clandestinas são alegorias voluptuosamente desgarradas do imaginário. Se observadas atentamente, vicejam ancestralidade. Carregam algum traço das eufóricas transgressões do passado, onde séculos atrás era driblado o status quo, quando escravos eram temporariamente libertados, e nobres desapoderados, para que durante os dias da festa, fantasias fossem trazidas para a realidade.  
Tudo isso me faz perceber que a dança está entranhada na sociedade como feixes nervosos que atravessam sua arquitetura não apenas longitudinalmente, mas transversalmente também. E seja como festejo de uma improvisada persona provisória, como estratégia do mistério, ou como ritmo da criatividade, ela também se dá de modo clandestino, com um poder peculiar de encantamento. Porque a dança é amiga da fantasia, e é irmã, filha ou mãe da felicidade.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

O rastro da dança: marcas, eco ou perfume


A coreógrafa e dançarina Anne Teresa De Keersmaeker em Violin fase, performance de dança parte da obra Fase: four movements to the music of Steve Reich (1982).


            Em sua versão mais originária,  como arte que acontece no momento presente, e pela presença física do artista, a dança consiste em um fenômeno efêmero. Passageira no tempo e passageira do tempo, ela parte do alcance dos nossos olhos, uma vez finalizada a apresentação cênica. Se momentos atrás estávamos diante de um território poético criado pela dança, agora tudo o que enxergamos é o espaço da cena vazio, não mais ocupado pelo corpo ou corpos dançantes. No entanto, essa mesma dança que acabou de acabar-se é também permanência em potencial. Ainda que não fique concretamente no espaço onde ocorreu, ela pode ficar em nós, estabelecendo-se ao estilo ondas no mundo metamórfico da nossa memória. Uma vez refluxo, encontra-se novamente acesa
            Na atualidade, com o uso de câmeras de alta definição e boas ilhas de edição, podemos fazer ótimos registros de obras coreográficas. Assim, é possível ir novamente até a dança, a fim de revisitá-la. Mas o que se passa no lembrar da dança é algo diferente: é ela que vem até nós, navegando como recordação, retornando na memória pelo rastro que outrora deixara. Se fomos fisgados por alguma dança, tenha sido ela conhecida ao vivo ou por meio de uma filmagem, poderemos receber sua visita, em um ressurgimento enquanto dança-lembrança. Desse modo, o componente fugaz da dança, ao invés de denegri-la, lhe imprime uma sofisticação peculiar. E para seus amantes, o desvanecer de sua passagem traz para suas vidas um significado a mais para a palavra saudade. 
            Laurence Louppe, em pequeno trecho de seu livro Poética da dança contemporânea (Orfeu Negro, 2012), fala da efemeridade da dança tomando como parte do título da discussão a expressão "rituais de desaparecimento". Ao decorrer da leitura, torna-se claro que o desaparecimento da cena, quando esta se finaliza enquanto acontecimento, não dever ser tomado como sinônimo de aniquilação, mas sim, como promessa de regresso. É por esse viés que Louppe traz para sua reflexão a questão da transição da presença da obra para sua ausência, no que concerne à reverberação da poética artística no mundo sensível de seu espectador. O instante da cena não mais existe, acabou-se. Mas fragmentos da cena emergem e submergem na memória inquietante de quem o testemunhou. Para Louppe, a passagem do visível para o invisível é algo essencial ao fenômeno cênico da dança. E pactando com esse pensamento, podemos dizer que a lembrança que se tem da dança é a mais rica herança que ela pode nos deixar. 
            Advertências, porém, precisam ser feitas quanto ao uso imoderado da palavra 'efêmero', opina Louppe, pois na esteira rolante do tempo industrial, essa palavra foi banalizada em muitos discursos da dança. Seu significado fora desviado, levando-a para longe de seu sentido reluzente. As críticas de Louppe apontam para o censo comum e sua condenação da dança a uma "privação da memória". Para Louppe, tal condenação não passa de um velho tabu, que liga o sentido de efemeridade ao uso empobrecido da noção de esquecimento, arrancando do efêmero sua beleza particular. Desse modo, o efêmero da dança acabou sendo associado à impotência e à incapacidade "para sobreviver e enfrentar o tempo". 
            Na contramão da lógica industrial do tempo, a fim de resgatar a alteridade do esquecimento e a legitimidade de sua presença no processo da divagação do efêmero, Louppe traz para suas ideias o historiador, filósofo e teólogo francês Michel de Certeau, quando transcreve que "não se deve fazer da memória uma entidade em si, e do esquecimento uma simples passagem negativa que enfraquece a integridade da memória. Na verdade, é o esquecimento que domina e explora, por sua conta, a passagem do tempo." 
            Esta outra lógica do esquecimento me faz deduzir que força de reverberação da dança reside em ser presença no fluxo que torna revolto o esquecimento. Ela deixa um rastro, e fica como trilha de marcas em nossa memória. Algo perfumado, uma fragrância que extrapola o ar, e adentra; um perfume no imaginário. Suas inesperadas ou delicadas entranças no nosso mundo das lembranças portam a ele cores de sabores de movimento; propiciam a graça da visão fugaz de um relâmpago de um pedaço de dança. E, o que é mais lindo na trança lembrança/esquecimento dessa espécie de memória: ela faz surgir novas danças, novos raios de movimento. Inspira, recria, modela ou origina desejos. E para aqueles que constroem danças, ela acende a nascente da criação. A dança lembrada alimenta a nova dança. E todo artista que bebeu nesse tipo de fonte tem profunda gratidão por aqueles que tocaram sua inspiração. 
            Assim como trouxe Certeau, Louppe traz o poeta francês renascentista Pierre de Ronsard para sua reflexão, lembrando que ele qualificava as rosas como algo efêmero. Isso me faz pensar na dança cênica como uma flor. Uma rosa rara e efêmera. Desabrocha e logo passa. No entanto, adentrou a memória, e assim, se não é promessa, é possibilidade de retorno, e de transformação.
            Anne Teresa De Keersmaeker, coreógrafa da companhia belga Rosas, ao final de uma peculiar performance de seu solo Violin Fase, (de 1982, e parte do trabalho Fase: four movements to the music of Steve Reichdeixa, literalmente, o rastro de sua dança no chão forrado de areia. Por onde ela passou ficam marcas que juntas lembram uma espécie de flor. O carimbo desta rosa bem desabrochada guarda o eco pulsante dos passos dos seus pés, e não apenas destes, mas também o eco dos traçados desenhados por seus braços no ar, o eco de seus pequenos, ligeiros e precisos saltos, de seus giros e desenvoltura contagiante. Deixo aqui o link para essa inspiração: De Keersmaeker cercada por árvores em Violin Fase



segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

A audição dançante: música e sensações-movimento


Imagem parte da obra musical e visual Girls (2009) de Takagi Musakatsu.
Site do artista: http://www.takagimasakatsu.com/index-eng.html
Link para a obra no Youtube: http://www.youtube.com/watch?v=P-tT6fu1I8k


            Pairar a alguns centímetros do chão e sentir ondas de movimento varrendo a mente, navegando pelas vísceras e chegando até a pele. Como seria descrever as sensações-movimento que a música pode causar em nosso estado corporal? Sentar-se para ouvir. O corpo aparentemente estático - sem dança, sem realizar movimentos. Não nos mexemos, mas algo se mexe. Não estamos nos deslocando no espaço, mas somos um espaço onde perambulam misteriosas naturezas de movimento. É a audição dançante percorrendo o corpo, o vazio do pensamento e o útero das emoções.
            A música é inseparável da dança. E isso, não apenas no que diz respeito à relação espontânea e primordial que existe entre ritmo sonoro e movimento corporal, mas também, no que diz respeito àquilo que é mais intrínseco no ouvir: as sensações-movimento. Estamos parados e o som musical se move em nós como que por vontade própria. Somos o palco, o tablado para a sua dança.
            Oliver Sacks, o neurologista-contador de histórias neurológicas (autor dos livros O homem que confundiu sua mulher com um chapéu e Um antropólogo em Marte, dentre outros) levanta, no prefácio do seu livro Alucinações musicais (2007, Companhia das Letras), uma brincadeira interessante: imaginar como seria viver sem música. Seria possível? Sacks menciona os personagens do livro O fim da infância, de Arthur C. Clarke, os Senhores Supremos: extraterrestres que, dentre outras singularidades, não possuem a aparelhagem cerebral necessária para escutar música. Se tomássemos o lugar de um desses seres no enredo da história contada no livro, como seria visitar a Terra, e assistir a um concerto musical sem conseguir ouvir a música, e nem mesmo sentir suas vibrações? Que visão no mínimo curiosa que teríamos! Tantos humanos envolvidos profundamente por algo invisível que invade suas orelhas... Como diz Sacks, podemos imaginar os alienígenas matutando a respeito dessa bizarra realidade incapturável. E prolongando a interrogação de Sacks, podemos nos perguntar como seria o dançar em uma condição existencial amusical? Haveria no planeta desses ETs alguma forma de dança? É possível... Mas e a audição dançante?
            "Ouvir música não é apenas algo auditivo e emocional, é também motor" afirma Sacks. Ele menciona Nietzsche: "Ouvimos música com nossos músculos" - frase que me traz à mente a imagem de um mosaico de músculos brilhantes, com áreas pulsando em diferentes intensidades, de acordo com as específicas manifestações do tônus muscular, despertadas ou desencadeadas pelo som e sua melodia. Em nossa carne estão as trilhas deixadas pelas experiências das emoções, e de todo o aprendizado sensório-motor. E quanta memória sensorial e emocional nos chega pelas asas da música. Pensando nisso, podemos lembrar também da dinâmica carne-linguagem trazida por George Lakoff e Mark Johnson em Philosophy in the flesh. Penso que também a audição dançante se insere no hall das experiências sensoriais que compõem a fundação da estrutura cognitiva humana discutida pelos autores, inscrevendo-se na pele e abaixo dela. A audição dançante é deflagrada pelos labirintos do ouvido, e visita a mente, espalhada na carne. Seu rastro, instantâneo ou não, pode levar à dança propriamente dita. Sair à sua procura pode levar à dança propriamente dita.
            Inspirado nas alucinações musicas, Sacks cita também Schopenhauer: "A inexprimível profundidade da música é algo fácil de entender, e no entanto, tão inexplicável." Pensando nessa inexplicabilidade da experiência apreciativa musical e em muitas outras familiares a ela, me vem à cabeça que elas representam a abertura para uma ótica diferente em relação ao mundo. Reconhecer o inexprimível é como olhar para a vida por intermédio de uma enigmática lente refratora. Ficamos em um ponto de vista no qual percebemos que as coisas falam ou agem por nós; experiência distinta do conduzir ou modelar coisas. Vivenciar a audição dançante nos coloca no exercício de sentir o movimento passando por nós por meio do som. Experimentamos uma espécie de passividade movediça permeada por uma atividade involuntária sensitiva e emocional. O som imaterial e seus respingos na matéria. Somos levados a passear sem sair do lugar. Será a audição um fruto da memória do movimento?


Link para uma possível experiência para a audição dançante:
Moondog com sua  Symphonique #3 (Ode to Venus) 
http://www.youtube.com/watch?v=xjDfIEiU0Q0



sexta-feira, 29 de novembro de 2013

O beijo e a dança


Cena da dança do beijo, no início do filme Tempus Fugit (2005), coreografado por Sidi Larbi Cherkaoui e elenco da companhia Les Ballets C. de la B. (Ballets Contemporains de la Belgique), e dirigido por Anaïs e Olivier Spiro.


            Nas teias das coincidências e conexões que compõem o tecido do nosso universo, alguma relação que seja, no mínimo, inspiradora, pode ser percebida entre a dança e o beijo. Esses dois elementos falam a linguagem do imprevisto, da desenvoltura, do incandescente. Uma verdadeira dança e um verdadeiro beijo retornam para o ser a sensação do fluir, do dissolver-se. Fazem com que o tempo se torne suspenso como uma estalactite, gotejando frações de segundos ou grupos de horas sem que essas durações sejam percebidas. Liberam no organismo hormônios transformadores do estado corporal. Altera-se a frequência cardíaca, a respiração e a percepção. Como experiências que compartilham aspectos em comum, o beijo e a dança dialogam. Existem de um modo retrorressonante no cotidiano, nos sonhos, na imaginação. Uma dança pode levar a um beijo, e um beijo pode levar a uma dança.
            Quando se dança a dois, na inquietude do desejo crescente, sente-se o beijo esperado antes que ele de fato aconteça – o beijo começou na dança, e antes mesmo de começar. Ou ainda, a dança nasce solitária e contente, como prelúdio ao beijo que está por chegar. Podemos imaginar Roland Barthes se referindo a isso em seu discurso amoroso: "Antes mesmo de você surgir trazendo um beijo, eu já começo a dançar”.
            Mas é certo que nem toda dança leva a um beijo. Nem mesmo se pensarmos nas danças apaixonadas: existem danças desejantes, porém contidas, que retêm o beijo; danças tímidas, que se contentam com a ideia do beijo; danças projetistas, que se apoiam na insinuação. Existem também danças que forçam um beijo, e que por isso, o uníssono do beijo não chega a ocorrer. E, além disso, a dança pode ser interrompida exatamente naquele curto instante que antecede o beijo.
            Se viermos pelo outro lado da estrada, tomando essa relação na direção contrária, temos que o acontecimento de um beijo pode desencadear uma dança, de modo que amalgamadas passadas funcionem como uma celebração a dois, autonomamente musicada – ritual espontâneo e tradutor de um afeto indescritível. No entanto, a dançada celebração pós-beijo também é passível de ocorrer individualmente. Podemos imaginar, por exemplo, que após um beijo empolgante seguido de um 'até logo', somos levados a pegar o caminho de volta para casa dançando.
            Pensando por uma perspectiva menos romântica, é bem possível considerar que uma dança a dois, consequente de determinado beijo, seja, sem rodeios, simplesmente um bailado caliente; reflexo comum da pulsão da libido, e concretização de microrritmos fisiológicos frenéticos, apressados e famintos.
            Também se pode conceber que o beijo leve à dança não apenas enquanto um desencadeamento de ações ocorridas em sucessão, dentro de um mesmo momento, mas também, de modo afastado no tempo. Ou seja, o beijo pode levar à dança por meio de uma reverberação ou ressonância proveniente do mundo da memória. Nesse caso, a sucessão acontece de modo expandido no tempo, impulsionada por uma provocação ocorrida nas terras distantes de Mnemosine. Isso significa que a lembrança de um beijo pode levar ao surgimento de uma dança – movimentos repercutidos de episódio compartilhado no passado, e dançados a sós no presente. Tal dança seria solitária apenas no plano visual, pois na esfera do sensível, ela transporta o outro, sua inventada representação, e também, as transmutações das mil faces da percepção outrora vivenciada.
            E... além de tudo, por vezes ocorre do beijo se misturar à dança, formando os dois uma substância híbrida, tornando-se inseparáveis.
            A dança cênica sempre trouxe a ideia do beijo dos amantes para os palcos. Beijos foram insinuados por meio de gestuais, foram projetados simbolicamente em trocas de olhares, metaforizados em diversos contatos corporais. A dança contemporânea leva literalmente o beijo para a cena. Exemplos de coreografias incríveis, onde se dança beijando, podem ser vistos no filme Tempus Fugit (coreografado por Sidi Larbi Cherkaoui e parte do elenco da companhia Balé Contemporâneo da Bélgica) e na obra Le Salon (da Peeping Tom companhia de dança-teatro). Na primeira, temos uma espécie de bela adormecida contemporânea. Nas areias de um oásis arábico, ela abandonou o véu que lhe oculta a face e os cabelos, e caída no chão em um sono profundo, é despertada pelo beijo de um homem, retribuindo-o sem parar, durante um tango visceral. Ela parece ser conduzida pela voracidade resultante do desejo de libertar-se de uma opressão sufocante. Na segunda coreografia, um casal, em meio à atribulada vida de uma peculiar família, se beija enquanto embala o sono do pequeno filho. Eles unem o cotidiano à eletricidade, e ninam a dois a criança, em uma dança que precisa controlar o calor delirante do beijo que nunca quer terminar.
            Como finalização, vale lembrar que o beijo também surge na cena dançante enquanto desfecho coreográfico, ou final apoteoticamente simples e sensual, como é o caso de um dueto do Grupo Corpo, dançado ao som da música Como Presiento (de Ernesto Lecuona, parte da trilha da montagem Lecuona). Após ritmados enlaces físicos algo desarmoniosos, o casal desencontrado se acerta em um beijo pontual e retilíneo.

            O beijo e a dança: os dois existem no movimento, por causa do movimento e para o movimento.


Deixo aqui o link para a parte inicial do filme Tempus Fugit no Youtube:

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Os sapatinhos vermelhos e a dança da entropia

            
Cartaz da edição francesa do filme musical
The Red Shoes (1948),
de Michael Powell e Emeric Pressburger. 
            Dançar sobre um chão de brasas como tortura ou punição seria um destino aterrorizante. Nos desenhos animados motivados no velho oeste norte-americano, vemos personagens desafortunados que são obrigados a saltar de um pé a outro para se livrar das balas deflagradas pelos gatilhos dos seus carrascos. Enquanto eles saltitam, o sádico se diverte. Pensando nessa conjuntura de sofrimento atrelado a movimento, me pergunto se frases como "O fulano conseguiu sair, mas o ciclano dançou" teriam a ver com o chão de brasas ou de pólvora. Elas trazem uma carga semântica negativa para a palavra 'dança', atrelando-a a uma autodestruição externamente imposta. Esse sentido de infortúnio e de desgraça amalgamado na dança involuntária é o elemento principal de uma velha história, um antigo conto conhecido como Os sapatinhos vermelhos ou As sapatilhas do Diabo
            A analista junguiana e contadora de histórias Clarissa Pinkola Estés, em seu livro Mulheres que correm com os lobos (editora Rocco) conta antigas histórias, todas relacionadas à jornada do desenvolvimento da psiquê feminina, e desenvolve uma leitura de suas simbologias, das forças arquetípicas que carregam e de suas mensagens ou ensinamentos. Um rico universo de entrelinhas vai se abrindo ao se ler tais interpretações. No livro, Estés apresenta uma versão germânica da história dos sapatos vermelhos. Segundo Estés, existem variadas versões para esse conto, havendo também versões deturpadas, que desviam os elementos narrativos, conduzindo a mensagem para diferentes ideologias. Nas diversas versões mais comprometidas com o sentido original da história, Estés identificou vários elementos em comum, e percebeu que elas transportam um mesmo esqueleto e uma mensagem semelhante ao fim. Sua personagem principal é uma garota órfã e pobre, que vivia pelas ruas dos vilarejos e pelos bosques, catando alimentos e sobrevivendo a diversas provações que as circunstâncias de sua vida lhe traziam. 
            Como a garota havia crescido sozinha, teve que descobrir por conta própria maneiras de se proteger e de conseguir aquilo que precisava. Ela espreitava o perigo, escondia-se de ameaças, e tinha uma curiosidade instintiva, mas igualmente na mesma quantidade, seus instintos a faziam muito prudente. Ela decidiu que iria costurar sapatos para proteger seus pés, pois assim seria capaz de caminhar sem precisar contornar alguns obstáculos, podendo atravessar locais que tivessem o chão espinhoso. Ela escolheu a cor vermelha para seus futuros sapatos, pois adorava as framboesas e suas tonalidades. E assim, foi guardando na sua trouxa pedaços de couro vermelho encontrados no lixo de sapateiros. Quando viesse o inverno, ela não sofreria tanto por conta dos pés gelados. Com o tempo, conseguiu juntar vários pedaços de couros vermelhos, e fabricou seus próprios sapatos. Ela os amava. Eles estavam sempre nos seus pés. Aos olhos dos outros, os sapatos poderiam ser considerados muito grosseiros e inacabados, mas para a garota, eles eram perfeitos.
            Um dia, quando a menina estava andando distraída por uma estrada, passou por ela uma carruagem dourada, que parou logo a frente. De lá desceu uma velha e rica senhora, que havia se compadecido da menina, e que queria adotá-la, levá-la para sua casa e tratá-la como sua filha. A velha disse para a menina que em sua casa ela teria água quente para o banho, uma cama macia para dormir e todas as refeições do dia. Além de boa instrução. A garota aceitou a proposta da senhora e entrou em sua carruagem.    
            Chegando na casa da rica senhora, a menina foi banhada, teve seu cabelo penteado, ganhou um lindo vestido e se esbanjou de comer. No dia seguinte, ela perguntou por sua roupa e sapatos, e a velha senhora disse que os tinha jogado ao fogo da lareira, por eles estarem imundos e serem demasiados grosseiros, mas que a menina não precisava se preocupar, pois teria muitas roupas e não lhe faltariam sapatos novos. Essa notícia tornou a menina muito triste, porque gostava de sua velha roupa, e seus sapatos feitos à mão eram para ela como um tesouro. Passavam-se os dias e a tristeza da menina aumentava, porque ela sentia falta de saltitar pelas estradas, de respirar o ar dos bosques, e de admirar seus sapatos vermelhos, sua criação. Desde que chegou na casa da velha senhora, ela tinha que ficar sentada, aprendendo a ler e a bordar.
            No sábado, a rica senhora disse à garota que iria levá-la a um sapateiro, para que ela escolhesse um sapato, pois no domingo sairiam de casa para a missa na qual a menina deveria ser crismada, já que ela tinha idade apropriada para isso. As duas então saíram de casa e subiram na carruagem. Chegando na sapataria, havia muitos sapatos bonitos, mas os olhos da garota se fixaram em um par de sapatos vermelhos que estavam no alto da vitrine. Ela apontou para os sapatos vermelhos e o sapateiro pegou-os, para que ela experimentasse. Na missa de crisma não podia-se usar sapatos vermelhos, mas como a velha senhora eram um pouco cega, ela não percebeu a cor dos sapatos e não fez objeções em relação à escolha da menina. O sapateiro piscou para a menina, e disse: "Ótima escolha!". No dia seguinte, a menina foi à igreja juntamente com a rica senhora, e calçando seus novos sapatos.
            Durante toda a missa, a menina foi acompanhada por olhares de reprovação. Todos achavam um absurdo ela usar sapatos vermelhos reluzentes dentro da igreja. Até mesmo os ícones pregados nas paredes e as estátuas de anjos e santos fecharam as sobrancelhas para seus sapatos. A menina entretanto nem reparou tais olhares, pois havia ficado a missa inteira olhando para seus sapatos novos, admirando aquele vermelho pulsante. Na saída da missa, havia um soldado encostado na porta da igreja. Ele usava uma tipoia no braço, tinha um cachimbo na boca e uma barba ruiva bem grande. Quando a menina passou por ele, ele falou "Que belas sapatilhas!" e se ofereceu para tirar o pó dos sapatos da menina. Ele então se abaixou e tamborilou com os dedos uma musiquinha na sola dos sapatos da menina, e deu uma piscada para ela. A velha senhora ficou ainda mais indignada com a menina, e os olhares de reprovação se tornaram ainda mais intensos. A menina porém, ao começar a andar para a carruagem, deu um rodopio, e fez ali mesmo alguns passos de dança, sentindo certa liberdade tomar conta de seu corpo. No entanto, a menina não entrou na carruagem, e saiu dançando para o outro lado da rua, e adentrou o descampado dançando. O cocheiro da carruagem correu atrás da menina, e conseguiu apanhá-la. Dentro da carruagem, ele e a velha senhora tentaram conter as pernas da menina, e se desdobraram para tirar os sapatos dos seus pés. Foram muitas tentativas. Os pés da menina não paravam de dançar, até mesmo quando estavam voltados para o ar eles se mexiam. Foi caótico, mas enfim, a velha e o cocheiro conseguiram tirar os sapatos dos pés da menina, e a carruagem seguiu seu destino.
            Chegando à casa da velha senhora, a menina foi advertida para não mais calçar aqueles sapatos. No dia seguinte, a velha foi novamente ao sapateiro com a menina, e comprou para ela um belo par de sapatos pretos. Mais uma semana se passou, e a menina sentia-se triste. Sentia falta dos bosques, não gostava dos sapatos pretos, e espiava os sapatos vermelhos no armário. No domingo seguinte, quando a velha chamou-a para irem à missa, a menina, sabendo que a velha tinha problema de vista, calçou novamente os sapatos vermelhos. Os olhares de reprovação durante a missa foram ainda mais fortes. Pessoas, ícones e estátuas reprovavam o comportamento da menina. Ao sair da igreja, o soldado de longa barba ruiva lá estava, encostado no portão. Ele piscou para a garota e falou "Não esqueça de ficar para o baile!". Ao ouvir essas palavras, a menina deu um rodopio e fez alguns passos de dança ali mesmo. Primeiro dançou uma gavota, depois uma csárdás, e em seguida, giros intensos de valsa, em intermináveis sucessões. A velha estava assombrada. A menina não parou de dançar. Ela se sentia livre, e não reparou que sua dança estava tornando-se desgovernada. Ela saiu descampado abaixo dançando, e o cocheiro não conseguiu apanhá-la dessa vez. 
            A garota chegou ao vilarejo vizinho dançando, e percebeu que estava longe demais de sua casa. Ela tentou virar-se para a esquerda, mas os sapatos a fizeram virar para a direita. Ela tentou ir em linha reta, mas os sapatos a fizeram dançar em círculos. A menina ficou apavorada. Os sapatinhos vermelhos conduziam seu corpo, e ela não tinha descanso. Ela passou dançando na frente de uma igreja, se agarrou com força à porta da igreja, enquanto seus pés tentavam levá-la. Ela pediu misericórdia. Ali apareceu um anjo, que disse a ela: "Não, não há misericórdia para você. Você desdenhou dos santos. Você irá dançar até que sua pele seque e sobre apenas suas vísceras. Você baterá três vezes na porta das casas, pedindo socorro, mas as pessoas, ao espiarem que é você quem bate à porta, não abrirão. Dancem sapatos vermelhos, vocês devem dançar!"  A menina desesperou-se e os sapatos foram conduzindo-a para dentro da floresta escura. Encostado em uma árvore, lá estava o soldado de barba ruiva. Ele disse: "Que belas sapatilhas!" e a menina apavorou-se ainda mais. Ela atravessou a floresta dançando. Dançava de noite e de dia, sob chuva e sob sol.
            Um dia, seus sapatos a levaram à floresta onde morava o carrasco do vilarejo, e assim que ela entrou dançando na casa dele, o machado pendurado na parede começou a tremer. O carrasco, ao vê-la, disse: "Você sabe quem eu sou, vá embora!" Mas a menina pediu a ele: "Corte os meus sapatos dos meus pés, por favor!" Ele então cortou fora as fivelas do sapato, mas eles não caíram. A menina tentou tirá-los. Enquanto dançava em cima de um pé, puxava o sapato do outro pé, mas era difícil, porque o pé que estava em sua mãos continuava dançando, sem parar. A menina tentou tirar o sapato do outro pé, mas aconteceu o mesmo. Desesperada então, a menina gritou para o carrasco: "Corte fora meus pés! Minha vida não vale nada mesmo!" e o carrasco assim o fez. Após o golpe do machado, os sapatinhos vermelhos com os pés da menina dentro saíram dançando pela floresta. A garota, decepada e caída no chão, ficou olhando os sapatos indo ao longe, até sumirem de vista. 
            O trágico fim dessa história faz sua interpretação começar de trás para frente: o que significa a perda dos pés? Podemos pensar que seja a perda da capacidade de movimento, da capacidade de seguir em frente. Ter os pés decepados é, simbolicamente, perder a base. Essa perda carrega consigo a perda da independência. Estés, quando analisa o conto em seu livro, desenvolve algumas interpretações. Na interpretação que se dá nas linhas abaixo, estou mesclando pontos de vista próprios às ideias de Estés.
            A pobreza da garota corresponde a uma condição de ser iniciante, de ter-se ainda muito a aprender, e muito a conquistar. Sua condição de órfã chama a atenção para uma personalidade que busca uma identidade própria, que não é guiada por modelos prontos, mas que tenta criar seu próprio estilo de ser. Seus sapatos feitos à mão são um primeiro resultado concreto de seus esforços criativos, de sua força expressiva, de sua compreensão do mundo. Representam uma materialização de seus conhecimentos, sendo fruto de sua inteligência livre, e de uma vida instintiva vibrante. O vermelho chama o sentido de vitalidade e desejo, mas também de alerta, pois o sangue dá vida quando corre dentro do corpo, e traz a morte quando jorra para fora do corpo. Fazer sapatos vermelhos na puberdade é aprender a respeito dessa polaridade do vermelho no momento em que se inicia a vida reprodutiva, quando o organismo feminino jovem tornou-se capaz de gestar em seu ventre. Seria uma condição ideal: iniciar-se na vida sensual feminina com a capacidade do discernimento acionada. Os sapatos vermelhos feitos à mão representam a necessidade de saber discernir o vermelho bom do vermelho destrutivo. A carruagem dourada seria a ofuscação do que tem real valor por aquilo que é valorizado socialmente em uma perspectiva de vida materialista. A idade avançada da senhora é a representação da experiência que vem com o tempo, dos aprendizados que só o tempo proporciona. No caso da senhora dessa história, a experiência de vida se deu apenas no mundo das convenções, e assim, a sabedoria que deveria guiar a menina foi deturpada. A promessa da senhora rica é uma cilada, é a tentação de trocar o risco pelo conforto inerte. Representa as garantias, a segurança proporcionada pelo convencional, uma alternativa ao medo do desconhecido. A casa da rica senhora é o cotidiano criativamente asséptico, orientado por valores materialistas vazios de originalidade. Representa modelos baseados no supérfluo, e uma educação castradora, que adestra instintos e ignora o singular. A queima dos sapatos feitos à mão é a destruição da persona criativa, é uma poda violenta na vida expressiva, no nascimento de uma autêntica individualidade. Os sapatos vermelhos do sapateiro representam a tentativa social de modelar o impulso singular padronizando-o; de tapear sua fome, e assim ofertar um substituto para o instinto criador. Representam a permissão para a manifestação de um falso caráter expressivo, o exótico adestrado e estéril. A ânsia de usar os sapatos vermelhos a qualquer custo representa a forte necessidade de reencontrar os instintos, a individualidade criativa que fora perdida. A igreja preconceituosa e o anjo inquisidor representam as instituições que trabalham na manutenção do status quo, de uma estrutura social que controla  e condena o desviante, o novo, a linha de fuga. O soldado é o diabo da história, e representa a bestialidade como ausência de prudência; a tentação de rebelar-se estupidamente; a vontade de divertir-se a qualquer custo. O prazer causado pelas primeiras danças dos sapatos vermelhos significa o deixar-se cegar ingenuamente por prazeres que na realidade são vampirescos, que sugam energias. A desvirtuada imitação de liberdade na qual se lança a garota é vazia, e a ilusão de preenchimento gera carências múltiplas. A dança final desgovernada é a própria entropia que reside em comportamentos viciosos autodestrutivos frutos da descontrolada necessidade de se saciar a sede por algo vibrante. Nesses comportamentos, a euforia revela-se torturante, e conduz ao fundo do poço.
            Diante da entropia da dança dos sapatos vermelhos, encontramos um sentido degenerativo para a dança. Isso me faz pensar que a conotação negativa da palavra 'dança' ("Xi, o fulano dançou.") pode estar atrelada a essa imagem secular, ou talvez milenar, do corpo cadavérico que deve dançar por condenação, castigo ou punição. Sem poder parar e sem repouso, sua dança é sua própria degradação.
         

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Dança macabra, mundo macabro

Isabelle Adjani em cena do filme Possession (1981), de Andrzej Żuławski.
         
            Na Idade Média europeia, por volta do século XV, e como ressonância da desolação causada pela peste negra, a universalidade da morte passou a ser uma alegoria presente em poesias, trovas, afrescos e dramatizações teatrais: era a dança macabra. Em registros históricos como gravuras e ilustrações, vemos esqueletos vivos de diversos tamanhos (em uma alusão a diferentes idades) vestidos por variados adereços. Eles estão em posturas dinâmicas, como se estivessem movendo-se ao som de alguma música. A dança macabra apontava que todos - ricos e pobres, felizardos e desafortunados - são iguais perante a morte; que todos terão o mesmo fim quando se depararem com a figura magra, alta, de face oculta, vestida no manto negro e portando uma grande foice. A todos a morte pegará a mão. Não haverá distinções perante ela.
            No filme O Sétimo Selo (1956), de Ingmar Bergman, encontramos no fim do enredo alguns personagens dispostos em uma fileira, de mãos dadas. Suas silhuetas são vistas cruzando o pico de um morro, sob forte vento e densas nuvens, em meio a uma tempestade. A fileira é conduzida pela morte, ecoando-se no cinema os sentidos da dança macabra. Nesse filme, Bergman abre portas para nossa imaginação visitar a maneira como a morte se fazia presente na cultura medieval; ele possibilita à nossa criatividade passear por hipotéticos detalhes visuais e sonoros.
            Fico imaginando como seriam as representações teatrais da dança macabra, e como elas deviam se mover sob os palcos nos olhos das crianças e dos velhos. Contudo, outras danças dessa mesma época impressionam-me ainda mais. Trata-se de manifestações culturais que foram consideradas satânicas pela igreja medieval - tidas como realísticas danças macabras - e que foram perseguidas: as danças ritualísticas femininas provenientes de diversas crenças religiosas ligadas à natureza. Pergunto-me como seriam essas danças. Como as mulheres moviam suas mãos para reverenciar a terra e o céu? Como ritmavam suas passadas? Para onde olhariam seus olhos? Como seria o fluxo de suas respirações?  
            Sobreviventes de culturas panteístas, esses rituais dançados carregavam traços de uma presença matriarcal. Ali havia o arquétipo da mulher ligada à terra, por compartilhar com ela o dom da fertilidade. O poder uterino de gerar causava respeito, e o sexo era o encontro natural intrínseco ao surgimento da vida. Os resquícios sociais dessas culturas estavam em dissonância aguda com a mentalidade católica medieval, e também, com a nova mentalidade racional que se prenunciava nas portas da Idade Moderna. A herança de dez séculos de Idade Média travestiu o poder do sexo e da gestação em uma atmosfera nefasta, pois foi de uma virgem que nasceu o Salvador. Para a igreja católica, que consistia na maior força política medieval, o sexo era sujeira, sensualidade era pecado, e a mulher era a porta de entrada para o mal penetrar no mundo.
            As práticas femininas dissidentes dos saberes matriarcais, como preparos de ervas e danças de adoração à terra, foram rotuladas pelo papado como heresias, e especificamente, como bruxaria, tendo sido perseguidas por tribunais seculares, locais e  religiosos, como a Santa Inquisição. Tais 'bruxas' passaram a ser caçadas. A igreja difundia que eram mulheres ligadas a forças da escuridão, hereges da sensualidade entregues ao pecado original; que tinham encontros com o Diabo, e que com ele aprendiam a gozar no sexo, a ter orgasmos - o sinal da danação. Na mentalidade obscura da época, apenas a morte no fogo poderia limpar essas almas da presença do mal. 
            Rose Marie Muraro, em seu impactante livro Textos da Fogueira (Editora Letraviva, 2000), discorre sobre o tema da satanização da sensualidade no mito da bruxa, e clarifica o entendimento do processo de destruição da emancipação feminina por parte do poder medieval, o qual atuou pelos meios da ardilosa caça às bruxas. Com a leitura do livro, fica claro que o que ocorreu nesse contexto foi algo extremamente maior do que a censura violenta a rituais considerados pagãos e taxados de diabólicos. Isso foi apenas o pavio de uma grande bomba. O que ocorreu na realidade foi uma destruição estratégica do poder feminino, o qual estava crescendo e espalhando-se socialmente. Mulheres estavam no governo de propriedades rurais em várias localidades, porque seus maridos, filhos e servos haviam partido para a derrocada das Cruzadas, e nunca mais voltaram. Gerações de mulheres se tornaram administradoras de feudos, se fizeram as principais educadoras das crianças e dos jovens. Dentre elas surgiram poetisas, pensadoras. Essas terras que encontravam-se sob o governo de mulheres foram para a mira de donos de grandes propriedades e representantes de poder da igreja, que queriam anexá-las a seus territórios. Desse modo, mulheres de variadas idades foram dizimadas nas fogueiras da caça às bruxas, durante quatro séculos. Foram milhares ou até milhões de vítimas, de acordo com os dados apontados por Muraro. Tal matança estava amparada no argumento católico da culpa feminina por ter protagonizado o pecado original.
            O Martelo das Feiticeiras (traduzido para o português por Muraro) era o nome do tratado de condenação utilizado pelos juízes dos tribunais de caça às bruxas. Por ele se decretavam as sentenças. Tem lá escrito que a simples presença de uma dessas mulheres podia enlouquecer os homens e influenciar as mulheres para a perdição, podia hipnotizar e amaldiçoar. A bruxa devia ser trazida ao julgamento nua e amarrada, pois suas roupas escondiam objetos de bruxaria e um simples movimento do seu corpo podia enfeitiçar. Seu cabelo devia ser todo cortado, pois continha encantos malignos. Sua boca devia ser amordaçada, porque sua voz era maldita e ela proclamava palavras satânicas. Os tribunais torturaram cruelmente essas 'bruxas'. Quando os julgamentos eram feitos por tribunais religiosos, após as torturas, as rés eram entregues às cortes locais ou seculares, para que fosse decretada a sentença da fogueira, pois a igreja, como instituição que se proclamava casta, se abstinha de matar. No maravilhoso filme O Nome da Rosa (1986) dirigido por Jean-Jacques Annaud, e baseado no livro homônimo de Umberto Eco, encontramos uma jovem 'bruxa' à beira do fogo. O filme é uma ótima oportunidade de viajar por esse momento tenebroso da época medieval. Também em O Sétimo Selo, Bergman nos apresenta uma jovem alucinada prestes a ser queimada na fogueira.
           Paro para pensar na figura que ficou para nós como memória de todo esse mito da bruxa - a velha malvada, corcunda e desgrenhada, aquela que come criancinhas, que cozinha serpentes e sapos, que faz porções de magia. Procuro representantes legítimas desse perfil: penso na Baba Iaga, personagem de inúmeros contos medievais, e que hoje se encontra até mesmo em cartoons atuais. Mas a bruxa alvo da inquisição muitas vezes era bonita e jovem.
            Pensando nessa segunda representante, chego a uma versão contemporânea: a personagem de Isabelle Adjani no filme Possession, de 1981, dirigido por Andrzej Żuławski. Em uma rica cena desse filme, a personagem de Adjani, quando se encontra só no corredor de uma estação de metrô, é possuída pelas forças demoníacas emanadas pela criatura horrenda com a qual se relacionava, o que culmina em uma macabra dança, uma autêntica dança de possessão diabólica. O que se passa, é que a personagem, minutos antes, havia ido a uma igreja, e encarado por alguns instantes a estátua de Jesus Cristo crucificado. Manteve os olhos fixos na face da estátua. Durante essa contemplação, gemeu e grunhiu baixinho. Ao deixar o interior da igreja, após descer a escadaria e chegar à rua, começa a rir descontroladamente. Ao entrar no túnel da estação de metrô, com o rosto sério e assustado, é tomada por movimentos corporais espasmódicos, de um fluxo pulsante e percurso desgarrado, com sacudidas de braços e tronco, e tensos arqueamentos de coluna.
            A dançada possessão de Adjani me deixou impressionada. Vi uma poesia visual belamente tenebrosa na cena. Uma dança como eu nunca tinha visto. Pensando na caça às bruxas da Idade Média, posso conceber Adjani nesse filme como uma espécie de vingadora do passado: ela sim é amante da maldade e de fato transa com o diabo. Tudo ao seu redor desmorona, é dilacerado, sofre, sangra. Uma autêntica bruxa das trevas que escapou do fogo da Inquisição.
            Diferentemente desse personagem de Adjani, as 'bruxas' da Alta Idade Média não escaparam das fogueiras. Tiveram o azar de estarem no lugar e no tempo errados. Junto a elas foram transformadas em cinzas inúmeras danças, inúmeras sabedorias. Dentre essas mulheres, além das que praticavam conhecimentos e rituais de origens conflitantes com o catolicismo, havia muitas que foram condenadas apenas por serem lideranças sociais, ou por terem conhecimentos que ameaçavam o engessamento psicológico implantado pela igreja. Tantas outras foram queimadas por terem se comportado em algum momento de uma maneira destoante da regra social que impunha uma falsa castidade extrema ao gênero feminino. Suspeitas de adultério também eram conduzidas para o fogo. Segundo Muraro, como mostram registros históricos, mulheres foram entregues pelos próprios maridos aos tribunais de caça às bruxas, pelo motivo de, na intimidade da cama desses matrimônios, durante o ato sexual, os esposos terem detectado a presença do prazer nos olhos de suas esposas. O sexo não podia ser desfrutado pelo gênero feminino. À mulher, apenas a cruz do pecado original. O gozo era sintoma de encontros secretos com Satã, e devia ser punido.
            Diante de tanto absurdo, de tanta mutilação da sensualidade, não espanta nem um pouco a ideia de que algumas mulheres pudessem ser repentinamente arrebatadas por catarses corporais, por crises nervosas, ou tomadas por movimentos convulsivos, tal qual danças desgovernadas. Porque mais macabro do que qualquer dança macabra, era esse mundo onde essas mulheres viveram. Fica o link para uma entrevista com Muraro (realizada no ano de 2000 por Nádia Timm):
http://www.nadiatimm.com/nt01/index.php?option=com_content&view=article&id=389:o-poder-do-prazer&catid=42:entrevistas&Itemid=61