Cobra indiana Naja naja. NatMis181 © Florilegius/The British Library Board Fonte: The British Library |
Linha sinuosa que se desloca no chão ou
na água. Letra ‘S’ em movimento. Fio vivo
enroscado em um galho ou a si próprio no chão. Número ‘8’ do infinito replicado
nas ondulações do longilíneo escamoso. Face em ponta triangular apontando para
a direção do deslocamento. Inexistência de ouvidos. Escuta de vibrações. Olhos de
visão limitada. Pálpebras transparentes constantemente fechadas. Inúmeras
vértebras. Inúmeras costelas em curva sutil. Trocas de pele. Ausência de
membros. Escamas. Língua para sentir cheiros. Temperatura regulada pelo
ambiente. Sangue frio.
Exercendo fascínio sobre o homem
desde tempos imemoriais, com seu movimento enigmático e plasticidade
hipnotizante, as serpentes povoaram e povoam o imaginário de diversas culturas.
Em mitologias, contos e histórias, foram muitas as ocasiões onde estiveram
associadas com energias maléficas, situações destrutivas e propósitos
deslegítimos. Medusa, Hidra, Edquidna, Apep, Basilisco, Boiuná e a serpente do
jardim do Éden são alguns desses personagens. Tanto em versões quase
inteiramente antropomórficas, tal qual a Medusa com seus cabelos-cobras, quanto em
personagens inteiramente zoomórficos, as serpentes são representadas como símbolos
da aniquilação, do terror, da dissimulação e da enganação. Trazem conflitos,
guerras, mortes assustadoras, traições e provações à vida dos heróis e das
populações que os cercam. Além de desempenharem a 'maldade' em papéis centrais nas
tramas, as serpentes também surgem como coadjuvantes importantes nos antigos
enredos trágicos, entrando fatalmente no caminho de pastores, ninfas e
guerreiros. Peçonhentas e tidas como vilãs naturais, seu veneno lança para
outros mundos personagens repentinamente mortos, tombados ao chão em curtas frações de tempo. Foi assim que Orfeu perdeu sua Eurídice para o
reino de Hades.
No entanto, em algumas
mitologias, a serpente também é associada a divindades boas, relacionando-se com aspectos positivos e benéficos à vida, como: abundância, fertilidade, força, renovação,
cura, proteção, educação e verdade. Dentre alguns representantes desta outra
ala das serpentes sobrenaturais estão Renenutet, Angita, Oxumaré, Ratumaibula e
Ningišzida. Este último, personagem masculino da mitologia mesopotâmica, se manifestava como serpente com
cabeça humana. Protetor da verdade e guardião do conhecimento, garantia a
prosperidade dos cultivos e a vitalidade das ervas. Quando se retirava da terra
em viagem para o submundo, os cultivos secavam e a vegetação morria. Era então
que vinham os períodos de estiagem e de infertilidade do solo. Na China, as
serpentes e seus parentes imaginários, os dragões, são adorados ainda hoje. A celebração da natureza parece ser o primeiro comprometimento dessas personagens, sendo o vínculo com a humanidade uma
consequência desse propósito primeiro. Por conta disso, talvez, elas nem
sempre estejam a favor dos homens. No Brasil, por exemplo, temos a figura do
Boitatá, a cobra de fogo que perambula
pelos campos combatendo incêndios. Transparente e por vezes incandescente como
brasa, ele persegue qualquer ser humano que tenha visto atear fogo nas matas.
Devido ao mistério que
exala, a serpente tem sido associada à sabedoria. É imagem marcante e
registrada nas trilhas da construção do conhecimento das sociedades. Está no
bastão símbolo da medicina e em cajados símbolos de doutrinas místicas. Para a
arte da dança, não haveria de ser diferente – essa figura tão rica e inspiradora
pode também ser encarada como uma espécie de mestra do movimento. Thérèse
Bertherat, a francesa criadora da antiginástica, em seu livro As estações do corpo (editora Martins
Fontes, 2001; originalmente lançado em 1985 em francês – Les saisons du
corps), toma a mobilidade da serpente como ponto de partida para provocar
reflexões a respeito da importância da saúde das musculaturas dorsais e
póstero-mediais do corpo humano. Bertherat assim o faz sob o argumento de que
toda a musculatura da serpente é posterior, ou seja: está inteiramente nas suas costas sua
capacidade de mover seu corpo ‘axialado’ de modo tão eficiente. Bertherat joga com a ideia de que descendemos das serpentes, por parecermos demais com elas em nossa estrutura axial óssea e muscular. Ela lembra, por exemplo, que nós serpenteamos a coluna discretamente toda vez que caminhamos. Na
contradireção da hipertrofiação muscular, lema do bodybuilding tão em voga
ainda hoje, Bertherat iniciou na década de 1970 sua campanha particular a favor
de músculos mais maleáveis e menos rígidos. O objetivo é que os músculos se
tornem tonicamente saudáveis; que sejam capazes de cumprir com graciosidade, ou
talvez seja melhor dizer, com economia de esforço, seu papel nas cadeias sinérgicas
do movimento. O lema é a liberdade de movimento. Steve
Paxton, o criador do contato-improvisação, movido também por esse mesmo desejo em seus estudos, coloca no foco das questões a riqueza sensitiva que vem do dorso. Em sua abordagem técnica denominada Material
for the spine (Material para a coluna), ele explora os movimentos provenientes
de músculos posteriores internos e externos, objetivando trazer a consciência
para “o lado escuro do corpo”; informando a mente a respeito das sutilezas
prodigiosas realizadas ali, e que ainda não tenham sido devidamente notadas ou
valorizadas.
O dorsal-detalhismo dinâmico de
Paxton e o reencontro com o livro de Bertherat, e sua alusão às costas da serpente, tornaram-me
curiosa sobre a vida cinética desses répteis. Fui então colher alguns dados. Impactaram-me coisas simples e até mesmo óbvias, como o fato de que o
esqueleto de uma serpente compõem-se apenas de crânio, maxilar, vértebras e
costelas. Foi inusitada a descoberta de que os órgãos em pares, como os rins,
por exemplo, ficam enfileirados e não lado-a-lado, como em nós humanos. A quantidade de
vértebras nas serpentes está na casa centesimal. Para além do número 100, pode-se
chegar até perto do número 500! Com tal quantidade de segmentos vertebrais,
quantas maravilhas do movimento pode uma serpente! Nós humanos, também devemos
toda nossa mobilidade axial à nossa coluna e suas musculaturas. Com nossas 24 vértebras, mais o
sacro e o cóccix, que consistem em grupos de vértebras calcificadas em peças
únicas, temos um eixo estável e flexível; plástico, funcional e expressivo. Pronto para o movimento. Isso
ocorre porque são somados ao longo da coluna, de vértebra a vértebra, os
pequenos movimentos articulares relacionados a cada encontro
de duas vértebras. Ou seja, uma única articulação vertebral pouco pode em
termos de amplitude de movimento, mas todas juntas podem bastante coisa. Ainda
assim, é claro, não chegamos nem aos pés das serpentes. E isso, não apenas
por causa da diferença quantitativa dos segmentos do eixo, mas também por conta
de outro fator: nós temos membros, e elas não. A ausência de patas deixa livre o
movimento da serpente, ao longo de toda sua longelineidade. E ainda existe a
diferença das costelas. As das serpentes são linhas arredondadas, mas que não
chegam a fechar uma espécie de semicircunferência, como o que ocorre em nós
(nossas alças de balde que navegam em semicírculo da coluna até o esterno). Cada
costela da serpente se projeta lateralmente para fora do eixo em uma curva sutil, assemelhando-se a um pequeno
pedaço do contorno de uma grande circunferência. Imagino que isso ajude a serpente a manter-se sobre seu ventre, ao invés de ficar rolando
de um lado para o outro.
Ao ver-se uma serpente movendo-se, muitas
histórias podem ser criadas, pois elas acendem o imaginário. As dançarinas indianas praticantes de um gênero de dança de origens milenares, o Bharatanatyam,
recontam corporalmente, no
número da dança da serpente (Naag Padam), história da mitologia
indiana, onde uma naja deslizante se faz alerta e seduz. Ao som da
música e da voz cantada repetidamente de modo energizante, as mãos das
dançarinas ondulam-se no espaço em formato de concha, e armam um bote acima da
cabeça. Os olhos sempre abertos e os joelhos prontos para trabalhar a qualquer
hora, em subidas e descidas ao solo. A flexibilidade do dorso é constantemente
exercida, com longas e amplas extensões de coluna. Quando estas dançarinas encantam seu público ao realizar a dança da serpente, acredito que estejam totalmente conectadas com a serpente que existe dentro delas próprias – a coluna e seu poder ancestral. Como uma serpente que acabou de trocar de pele, ela viceja e
se liberta.
Deixo aqui o link para uma apresentação da dançarina de Bharatanatyam Radhini Sivadharanda na dança da serpente: http://www.kalaimanram.co.uk/VideoView.aspx?Spec=Videos5