sexta-feira, 26 de julho de 2013

Dança macabra, mundo macabro

Isabelle Adjani em cena do filme Possession (1981), de Andrzej Żuławski.
         
            Na Idade Média europeia, por volta do século XV, e como ressonância da desolação causada pela peste negra, a universalidade da morte passou a ser uma alegoria presente em poesias, trovas, afrescos e dramatizações teatrais: era a dança macabra. Em registros históricos como gravuras e ilustrações, vemos esqueletos vivos de diversos tamanhos (em uma alusão a diferentes idades) vestidos por variados adereços. Eles estão em posturas dinâmicas, como se estivessem movendo-se ao som de alguma música. A dança macabra apontava que todos - ricos e pobres, felizardos e desafortunados - são iguais perante a morte; que todos terão o mesmo fim quando se depararem com a figura magra, alta, de face oculta, vestida no manto negro e portando uma grande foice. A todos a morte pegará a mão. Não haverá distinções perante ela.
            No filme O Sétimo Selo (1956), de Ingmar Bergman, encontramos no fim do enredo alguns personagens dispostos em uma fileira, de mãos dadas. Suas silhuetas são vistas cruzando o pico de um morro, sob forte vento e densas nuvens, em meio a uma tempestade. A fileira é conduzida pela morte, ecoando-se no cinema os sentidos da dança macabra. Nesse filme, Bergman abre portas para nossa imaginação visitar a maneira como a morte se fazia presente na cultura medieval; ele possibilita à nossa criatividade passear por hipotéticos detalhes visuais e sonoros.
            Fico imaginando como seriam as representações teatrais da dança macabra, e como elas deviam se mover sob os palcos nos olhos das crianças e dos velhos. Contudo, outras danças dessa mesma época impressionam-me ainda mais. Trata-se de manifestações culturais que foram consideradas satânicas pela igreja medieval - tidas como realísticas danças macabras - e que foram perseguidas: as danças ritualísticas femininas provenientes de diversas crenças religiosas ligadas à natureza. Pergunto-me como seriam essas danças. Como as mulheres moviam suas mãos para reverenciar a terra e o céu? Como ritmavam suas passadas? Para onde olhariam seus olhos? Como seria o fluxo de suas respirações?  
            Sobreviventes de culturas panteístas, esses rituais dançados carregavam traços de uma presença matriarcal. Ali havia o arquétipo da mulher ligada à terra, por compartilhar com ela o dom da fertilidade. O poder uterino de gerar causava respeito, e o sexo era o encontro natural intrínseco ao surgimento da vida. Os resquícios sociais dessas culturas estavam em dissonância aguda com a mentalidade católica medieval, e também, com a nova mentalidade racional que se prenunciava nas portas da Idade Moderna. A herança de dez séculos de Idade Média travestiu o poder do sexo e da gestação em uma atmosfera nefasta, pois foi de uma virgem que nasceu o Salvador. Para a igreja católica, que consistia na maior força política medieval, o sexo era sujeira, sensualidade era pecado, e a mulher era a porta de entrada para o mal penetrar no mundo.
            As práticas femininas dissidentes dos saberes matriarcais, como preparos de ervas e danças de adoração à terra, foram rotuladas pelo papado como heresias, e especificamente, como bruxaria, tendo sido perseguidas por tribunais seculares, locais e  religiosos, como a Santa Inquisição. Tais 'bruxas' passaram a ser caçadas. A igreja difundia que eram mulheres ligadas a forças da escuridão, hereges da sensualidade entregues ao pecado original; que tinham encontros com o Diabo, e que com ele aprendiam a gozar no sexo, a ter orgasmos - o sinal da danação. Na mentalidade obscura da época, apenas a morte no fogo poderia limpar essas almas da presença do mal. 
            Rose Marie Muraro, em seu impactante livro Textos da Fogueira (Editora Letraviva, 2000), discorre sobre o tema da satanização da sensualidade no mito da bruxa, e clarifica o entendimento do processo de destruição da emancipação feminina por parte do poder medieval, o qual atuou pelos meios da ardilosa caça às bruxas. Com a leitura do livro, fica claro que o que ocorreu nesse contexto foi algo extremamente maior do que a censura violenta a rituais considerados pagãos e taxados de diabólicos. Isso foi apenas o pavio de uma grande bomba. O que ocorreu na realidade foi uma destruição estratégica do poder feminino, o qual estava crescendo e espalhando-se socialmente. Mulheres estavam no governo de propriedades rurais em várias localidades, porque seus maridos, filhos e servos haviam partido para a derrocada das Cruzadas, e nunca mais voltaram. Gerações de mulheres se tornaram administradoras de feudos, se fizeram as principais educadoras das crianças e dos jovens. Dentre elas surgiram poetisas, pensadoras. Essas terras que encontravam-se sob o governo de mulheres foram para a mira de donos de grandes propriedades e representantes de poder da igreja, que queriam anexá-las a seus territórios. Desse modo, mulheres de variadas idades foram dizimadas nas fogueiras da caça às bruxas, durante quatro séculos. Foram milhares ou até milhões de vítimas, de acordo com os dados apontados por Muraro. Tal matança estava amparada no argumento católico da culpa feminina por ter protagonizado o pecado original.
            O Martelo das Feiticeiras (traduzido para o português por Muraro) era o nome do tratado de condenação utilizado pelos juízes dos tribunais de caça às bruxas. Por ele se decretavam as sentenças. Tem lá escrito que a simples presença de uma dessas mulheres podia enlouquecer os homens e influenciar as mulheres para a perdição, podia hipnotizar e amaldiçoar. A bruxa devia ser trazida ao julgamento nua e amarrada, pois suas roupas escondiam objetos de bruxaria e um simples movimento do seu corpo podia enfeitiçar. Seu cabelo devia ser todo cortado, pois continha encantos malignos. Sua boca devia ser amordaçada, porque sua voz era maldita e ela proclamava palavras satânicas. Os tribunais torturaram cruelmente essas 'bruxas'. Quando os julgamentos eram feitos por tribunais religiosos, após as torturas, as rés eram entregues às cortes locais ou seculares, para que fosse decretada a sentença da fogueira, pois a igreja, como instituição que se proclamava casta, se abstinha de matar. No maravilhoso filme O Nome da Rosa (1986) dirigido por Jean-Jacques Annaud, e baseado no livro homônimo de Umberto Eco, encontramos uma jovem 'bruxa' à beira do fogo. O filme é uma ótima oportunidade de viajar por esse momento tenebroso da época medieval. Também em O Sétimo Selo, Bergman nos apresenta uma jovem alucinada prestes a ser queimada na fogueira.
           Paro para pensar na figura que ficou para nós como memória de todo esse mito da bruxa - a velha malvada, corcunda e desgrenhada, aquela que come criancinhas, que cozinha serpentes e sapos, que faz porções de magia. Procuro representantes legítimas desse perfil: penso na Baba Iaga, personagem de inúmeros contos medievais, e que hoje se encontra até mesmo em cartoons atuais. Mas a bruxa alvo da inquisição muitas vezes era bonita e jovem.
            Pensando nessa segunda representante, chego a uma versão contemporânea: a personagem de Isabelle Adjani no filme Possession, de 1981, dirigido por Andrzej Żuławski. Em uma rica cena desse filme, a personagem de Adjani, quando se encontra só no corredor de uma estação de metrô, é possuída pelas forças demoníacas emanadas pela criatura horrenda com a qual se relacionava, o que culmina em uma macabra dança, uma autêntica dança de possessão diabólica. O que se passa, é que a personagem, minutos antes, havia ido a uma igreja, e encarado por alguns instantes a estátua de Jesus Cristo crucificado. Manteve os olhos fixos na face da estátua. Durante essa contemplação, gemeu e grunhiu baixinho. Ao deixar o interior da igreja, após descer a escadaria e chegar à rua, começa a rir descontroladamente. Ao entrar no túnel da estação de metrô, com o rosto sério e assustado, é tomada por movimentos corporais espasmódicos, de um fluxo pulsante e percurso desgarrado, com sacudidas de braços e tronco, e tensos arqueamentos de coluna.
            A dançada possessão de Adjani me deixou impressionada. Vi uma poesia visual belamente tenebrosa na cena. Uma dança como eu nunca tinha visto. Pensando na caça às bruxas da Idade Média, posso conceber Adjani nesse filme como uma espécie de vingadora do passado: ela sim é amante da maldade e de fato transa com o diabo. Tudo ao seu redor desmorona, é dilacerado, sofre, sangra. Uma autêntica bruxa das trevas que escapou do fogo da Inquisição.
            Diferentemente desse personagem de Adjani, as 'bruxas' da Alta Idade Média não escaparam das fogueiras. Tiveram o azar de estarem no lugar e no tempo errados. Junto a elas foram transformadas em cinzas inúmeras danças, inúmeras sabedorias. Dentre essas mulheres, além das que praticavam conhecimentos e rituais de origens conflitantes com o catolicismo, havia muitas que foram condenadas apenas por serem lideranças sociais, ou por terem conhecimentos que ameaçavam o engessamento psicológico implantado pela igreja. Tantas outras foram queimadas por terem se comportado em algum momento de uma maneira destoante da regra social que impunha uma falsa castidade extrema ao gênero feminino. Suspeitas de adultério também eram conduzidas para o fogo. Segundo Muraro, como mostram registros históricos, mulheres foram entregues pelos próprios maridos aos tribunais de caça às bruxas, pelo motivo de, na intimidade da cama desses matrimônios, durante o ato sexual, os esposos terem detectado a presença do prazer nos olhos de suas esposas. O sexo não podia ser desfrutado pelo gênero feminino. À mulher, apenas a cruz do pecado original. O gozo era sintoma de encontros secretos com Satã, e devia ser punido.
            Diante de tanto absurdo, de tanta mutilação da sensualidade, não espanta nem um pouco a ideia de que algumas mulheres pudessem ser repentinamente arrebatadas por catarses corporais, por crises nervosas, ou tomadas por movimentos convulsivos, tal qual danças desgovernadas. Porque mais macabro do que qualquer dança macabra, era esse mundo onde essas mulheres viveram. Fica o link para uma entrevista com Muraro (realizada no ano de 2000 por Nádia Timm):
http://www.nadiatimm.com/nt01/index.php?option=com_content&view=article&id=389:o-poder-do-prazer&catid=42:entrevistas&Itemid=61

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