segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

A audição dançante: música e sensações-movimento


Imagem parte da obra musical e visual Girls (2009) de Takagi Musakatsu.
Site do artista: http://www.takagimasakatsu.com/index-eng.html
Link para a obra no Youtube: http://www.youtube.com/watch?v=P-tT6fu1I8k


            Pairar a alguns centímetros do chão e sentir ondas de movimento varrendo a mente, navegando pelas vísceras e chegando até a pele. Como seria descrever as sensações-movimento que a música pode causar em nosso estado corporal? Sentar-se para ouvir. O corpo aparentemente estático - sem dança, sem realizar movimentos. Não nos mexemos, mas algo se mexe. Não estamos nos deslocando no espaço, mas somos um espaço onde perambulam misteriosas naturezas de movimento. É a audição dançante percorrendo o corpo, o vazio do pensamento e o útero das emoções.
            A música é inseparável da dança. E isso, não apenas no que diz respeito à relação espontânea e primordial que existe entre ritmo sonoro e movimento corporal, mas também, no que diz respeito àquilo que é mais intrínseco no ouvir: as sensações-movimento. Estamos parados e o som musical se move em nós como que por vontade própria. Somos o palco, o tablado para a sua dança.
            Oliver Sacks, o neurologista-contador de histórias neurológicas (autor dos livros O homem que confundiu sua mulher com um chapéu e Um antropólogo em Marte, dentre outros) levanta, no prefácio do seu livro Alucinações musicais (2007, Companhia das Letras), uma brincadeira interessante: imaginar como seria viver sem música. Seria possível? Sacks menciona os personagens do livro O fim da infância, de Arthur C. Clarke, os Senhores Supremos: extraterrestres que, dentre outras singularidades, não possuem a aparelhagem cerebral necessária para escutar música. Se tomássemos o lugar de um desses seres no enredo da história contada no livro, como seria visitar a Terra, e assistir a um concerto musical sem conseguir ouvir a música, e nem mesmo sentir suas vibrações? Que visão no mínimo curiosa que teríamos! Tantos humanos envolvidos profundamente por algo invisível que invade suas orelhas... Como diz Sacks, podemos imaginar os alienígenas matutando a respeito dessa bizarra realidade incapturável. E prolongando a interrogação de Sacks, podemos nos perguntar como seria o dançar em uma condição existencial amusical? Haveria no planeta desses ETs alguma forma de dança? É possível... Mas e a audição dançante?
            "Ouvir música não é apenas algo auditivo e emocional, é também motor" afirma Sacks. Ele menciona Nietzsche: "Ouvimos música com nossos músculos" - frase que me traz à mente a imagem de um mosaico de músculos brilhantes, com áreas pulsando em diferentes intensidades, de acordo com as específicas manifestações do tônus muscular, despertadas ou desencadeadas pelo som e sua melodia. Em nossa carne estão as trilhas deixadas pelas experiências das emoções, e de todo o aprendizado sensório-motor. E quanta memória sensorial e emocional nos chega pelas asas da música. Pensando nisso, podemos lembrar também da dinâmica carne-linguagem trazida por George Lakoff e Mark Johnson em Philosophy in the flesh. Penso que também a audição dançante se insere no hall das experiências sensoriais que compõem a fundação da estrutura cognitiva humana discutida pelos autores, inscrevendo-se na pele e abaixo dela. A audição dançante é deflagrada pelos labirintos do ouvido, e visita a mente, espalhada na carne. Seu rastro, instantâneo ou não, pode levar à dança propriamente dita. Sair à sua procura pode levar à dança propriamente dita.
            Inspirado nas alucinações musicas, Sacks cita também Schopenhauer: "A inexprimível profundidade da música é algo fácil de entender, e no entanto, tão inexplicável." Pensando nessa inexplicabilidade da experiência apreciativa musical e em muitas outras familiares a ela, me vem à cabeça que elas representam a abertura para uma ótica diferente em relação ao mundo. Reconhecer o inexprimível é como olhar para a vida por intermédio de uma enigmática lente refratora. Ficamos em um ponto de vista no qual percebemos que as coisas falam ou agem por nós; experiência distinta do conduzir ou modelar coisas. Vivenciar a audição dançante nos coloca no exercício de sentir o movimento passando por nós por meio do som. Experimentamos uma espécie de passividade movediça permeada por uma atividade involuntária sensitiva e emocional. O som imaterial e seus respingos na matéria. Somos levados a passear sem sair do lugar. Será a audição um fruto da memória do movimento?


Link para uma possível experiência para a audição dançante:
Moondog com sua  Symphonique #3 (Ode to Venus) 
http://www.youtube.com/watch?v=xjDfIEiU0Q0



sexta-feira, 29 de novembro de 2013

O beijo e a dança


Cena da dança do beijo, no início do filme Tempus Fugit (2005), coreografado por Sidi Larbi Cherkaoui e elenco da companhia Les Ballets C. de la B. (Ballets Contemporains de la Belgique), e dirigido por Anaïs e Olivier Spiro.


            Nas teias das coincidências e conexões que compõem o tecido do nosso universo, alguma relação que seja, no mínimo, inspiradora, pode ser percebida entre a dança e o beijo. Esses dois elementos falam a linguagem do imprevisto, da desenvoltura, do incandescente. Uma verdadeira dança e um verdadeiro beijo retornam para o ser a sensação do fluir, do dissolver-se. Fazem com que o tempo se torne suspenso como uma estalactite, gotejando frações de segundos ou grupos de horas sem que essas durações sejam percebidas. Liberam no organismo hormônios transformadores do estado corporal. Altera-se a frequência cardíaca, a respiração e a percepção. Como experiências que compartilham aspectos em comum, o beijo e a dança dialogam. Existem de um modo retrorressonante no cotidiano, nos sonhos, na imaginação. Uma dança pode levar a um beijo, e um beijo pode levar a uma dança.
            Quando se dança a dois, na inquietude do desejo crescente, sente-se o beijo esperado antes que ele de fato aconteça – o beijo começou na dança, e antes mesmo de começar. Ou ainda, a dança nasce solitária e contente, como prelúdio ao beijo que está por chegar. Podemos imaginar Roland Barthes se referindo a isso em seu discurso amoroso: "Antes mesmo de você surgir trazendo um beijo, eu já começo a dançar”.
            Mas é certo que nem toda dança leva a um beijo. Nem mesmo se pensarmos nas danças apaixonadas: existem danças desejantes, porém contidas, que retêm o beijo; danças tímidas, que se contentam com a ideia do beijo; danças projetistas, que se apoiam na insinuação. Existem também danças que forçam um beijo, e que por isso, o uníssono do beijo não chega a ocorrer. E, além disso, a dança pode ser interrompida exatamente naquele curto instante que antecede o beijo.
            Se viermos pelo outro lado da estrada, tomando essa relação na direção contrária, temos que o acontecimento de um beijo pode desencadear uma dança, de modo que amalgamadas passadas funcionem como uma celebração a dois, autonomamente musicada – ritual espontâneo e tradutor de um afeto indescritível. No entanto, a dançada celebração pós-beijo também é passível de ocorrer individualmente. Podemos imaginar, por exemplo, que após um beijo empolgante seguido de um 'até logo', somos levados a pegar o caminho de volta para casa dançando.
            Pensando por uma perspectiva menos romântica, é bem possível considerar que uma dança a dois, consequente de determinado beijo, seja, sem rodeios, simplesmente um bailado caliente; reflexo comum da pulsão da libido, e concretização de microrritmos fisiológicos frenéticos, apressados e famintos.
            Também se pode conceber que o beijo leve à dança não apenas enquanto um desencadeamento de ações ocorridas em sucessão, dentro de um mesmo momento, mas também, de modo afastado no tempo. Ou seja, o beijo pode levar à dança por meio de uma reverberação ou ressonância proveniente do mundo da memória. Nesse caso, a sucessão acontece de modo expandido no tempo, impulsionada por uma provocação ocorrida nas terras distantes de Mnemosine. Isso significa que a lembrança de um beijo pode levar ao surgimento de uma dança – movimentos repercutidos de episódio compartilhado no passado, e dançados a sós no presente. Tal dança seria solitária apenas no plano visual, pois na esfera do sensível, ela transporta o outro, sua inventada representação, e também, as transmutações das mil faces da percepção outrora vivenciada.
            E... além de tudo, por vezes ocorre do beijo se misturar à dança, formando os dois uma substância híbrida, tornando-se inseparáveis.
            A dança cênica sempre trouxe a ideia do beijo dos amantes para os palcos. Beijos foram insinuados por meio de gestuais, foram projetados simbolicamente em trocas de olhares, metaforizados em diversos contatos corporais. A dança contemporânea leva literalmente o beijo para a cena. Exemplos de coreografias incríveis, onde se dança beijando, podem ser vistos no filme Tempus Fugit (coreografado por Sidi Larbi Cherkaoui e parte do elenco da companhia Balé Contemporâneo da Bélgica) e na obra Le Salon (da Peeping Tom companhia de dança-teatro). Na primeira, temos uma espécie de bela adormecida contemporânea. Nas areias de um oásis arábico, ela abandonou o véu que lhe oculta a face e os cabelos, e caída no chão em um sono profundo, é despertada pelo beijo de um homem, retribuindo-o sem parar, durante um tango visceral. Ela parece ser conduzida pela voracidade resultante do desejo de libertar-se de uma opressão sufocante. Na segunda coreografia, um casal, em meio à atribulada vida de uma peculiar família, se beija enquanto embala o sono do pequeno filho. Eles unem o cotidiano à eletricidade, e ninam a dois a criança, em uma dança que precisa controlar o calor delirante do beijo que nunca quer terminar.
            Como finalização, vale lembrar que o beijo também surge na cena dançante enquanto desfecho coreográfico, ou final apoteoticamente simples e sensual, como é o caso de um dueto do Grupo Corpo, dançado ao som da música Como Presiento (de Ernesto Lecuona, parte da trilha da montagem Lecuona). Após ritmados enlaces físicos algo desarmoniosos, o casal desencontrado se acerta em um beijo pontual e retilíneo.

            O beijo e a dança: os dois existem no movimento, por causa do movimento e para o movimento.


Deixo aqui o link para a parte inicial do filme Tempus Fugit no Youtube:

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Os sapatinhos vermelhos e a dança da entropia

            
Cartaz da edição francesa do filme musical
The Red Shoes (1948),
de Michael Powell e Emeric Pressburger. 
            Dançar sobre um chão de brasas como tortura ou punição seria um destino aterrorizante. Nos desenhos animados motivados no velho oeste norte-americano, vemos personagens desafortunados que são obrigados a saltar de um pé a outro para se livrar das balas deflagradas pelos gatilhos dos seus carrascos. Enquanto eles saltitam, o sádico se diverte. Pensando nessa conjuntura de sofrimento atrelado a movimento, me pergunto se frases como "O fulano conseguiu sair, mas o ciclano dançou" teriam a ver com o chão de brasas ou de pólvora. Elas trazem uma carga semântica negativa para a palavra 'dança', atrelando-a a uma autodestruição externamente imposta. Esse sentido de infortúnio e de desgraça amalgamado na dança involuntária é o elemento principal de uma velha história, um antigo conto conhecido como Os sapatinhos vermelhos ou As sapatilhas do Diabo
            A analista junguiana e contadora de histórias Clarissa Pinkola Estés, em seu livro Mulheres que correm com os lobos (editora Rocco) conta antigas histórias, todas relacionadas à jornada do desenvolvimento da psiquê feminina, e desenvolve uma leitura de suas simbologias, das forças arquetípicas que carregam e de suas mensagens ou ensinamentos. Um rico universo de entrelinhas vai se abrindo ao se ler tais interpretações. No livro, Estés apresenta uma versão germânica da história dos sapatos vermelhos. Segundo Estés, existem variadas versões para esse conto, havendo também versões deturpadas, que desviam os elementos narrativos, conduzindo a mensagem para diferentes ideologias. Nas diversas versões mais comprometidas com o sentido original da história, Estés identificou vários elementos em comum, e percebeu que elas transportam um mesmo esqueleto e uma mensagem semelhante ao fim. Sua personagem principal é uma garota órfã e pobre, que vivia pelas ruas dos vilarejos e pelos bosques, catando alimentos e sobrevivendo a diversas provações que as circunstâncias de sua vida lhe traziam. 
            Como a garota havia crescido sozinha, teve que descobrir por conta própria maneiras de se proteger e de conseguir aquilo que precisava. Ela espreitava o perigo, escondia-se de ameaças, e tinha uma curiosidade instintiva, mas igualmente na mesma quantidade, seus instintos a faziam muito prudente. Ela decidiu que iria costurar sapatos para proteger seus pés, pois assim seria capaz de caminhar sem precisar contornar alguns obstáculos, podendo atravessar locais que tivessem o chão espinhoso. Ela escolheu a cor vermelha para seus futuros sapatos, pois adorava as framboesas e suas tonalidades. E assim, foi guardando na sua trouxa pedaços de couro vermelho encontrados no lixo de sapateiros. Quando viesse o inverno, ela não sofreria tanto por conta dos pés gelados. Com o tempo, conseguiu juntar vários pedaços de couros vermelhos, e fabricou seus próprios sapatos. Ela os amava. Eles estavam sempre nos seus pés. Aos olhos dos outros, os sapatos poderiam ser considerados muito grosseiros e inacabados, mas para a garota, eles eram perfeitos.
            Um dia, quando a menina estava andando distraída por uma estrada, passou por ela uma carruagem dourada, que parou logo a frente. De lá desceu uma velha e rica senhora, que havia se compadecido da menina, e que queria adotá-la, levá-la para sua casa e tratá-la como sua filha. A velha disse para a menina que em sua casa ela teria água quente para o banho, uma cama macia para dormir e todas as refeições do dia. Além de boa instrução. A garota aceitou a proposta da senhora e entrou em sua carruagem.    
            Chegando na casa da rica senhora, a menina foi banhada, teve seu cabelo penteado, ganhou um lindo vestido e se esbanjou de comer. No dia seguinte, ela perguntou por sua roupa e sapatos, e a velha senhora disse que os tinha jogado ao fogo da lareira, por eles estarem imundos e serem demasiados grosseiros, mas que a menina não precisava se preocupar, pois teria muitas roupas e não lhe faltariam sapatos novos. Essa notícia tornou a menina muito triste, porque gostava de sua velha roupa, e seus sapatos feitos à mão eram para ela como um tesouro. Passavam-se os dias e a tristeza da menina aumentava, porque ela sentia falta de saltitar pelas estradas, de respirar o ar dos bosques, e de admirar seus sapatos vermelhos, sua criação. Desde que chegou na casa da velha senhora, ela tinha que ficar sentada, aprendendo a ler e a bordar.
            No sábado, a rica senhora disse à garota que iria levá-la a um sapateiro, para que ela escolhesse um sapato, pois no domingo sairiam de casa para a missa na qual a menina deveria ser crismada, já que ela tinha idade apropriada para isso. As duas então saíram de casa e subiram na carruagem. Chegando na sapataria, havia muitos sapatos bonitos, mas os olhos da garota se fixaram em um par de sapatos vermelhos que estavam no alto da vitrine. Ela apontou para os sapatos vermelhos e o sapateiro pegou-os, para que ela experimentasse. Na missa de crisma não podia-se usar sapatos vermelhos, mas como a velha senhora eram um pouco cega, ela não percebeu a cor dos sapatos e não fez objeções em relação à escolha da menina. O sapateiro piscou para a menina, e disse: "Ótima escolha!". No dia seguinte, a menina foi à igreja juntamente com a rica senhora, e calçando seus novos sapatos.
            Durante toda a missa, a menina foi acompanhada por olhares de reprovação. Todos achavam um absurdo ela usar sapatos vermelhos reluzentes dentro da igreja. Até mesmo os ícones pregados nas paredes e as estátuas de anjos e santos fecharam as sobrancelhas para seus sapatos. A menina entretanto nem reparou tais olhares, pois havia ficado a missa inteira olhando para seus sapatos novos, admirando aquele vermelho pulsante. Na saída da missa, havia um soldado encostado na porta da igreja. Ele usava uma tipoia no braço, tinha um cachimbo na boca e uma barba ruiva bem grande. Quando a menina passou por ele, ele falou "Que belas sapatilhas!" e se ofereceu para tirar o pó dos sapatos da menina. Ele então se abaixou e tamborilou com os dedos uma musiquinha na sola dos sapatos da menina, e deu uma piscada para ela. A velha senhora ficou ainda mais indignada com a menina, e os olhares de reprovação se tornaram ainda mais intensos. A menina porém, ao começar a andar para a carruagem, deu um rodopio, e fez ali mesmo alguns passos de dança, sentindo certa liberdade tomar conta de seu corpo. No entanto, a menina não entrou na carruagem, e saiu dançando para o outro lado da rua, e adentrou o descampado dançando. O cocheiro da carruagem correu atrás da menina, e conseguiu apanhá-la. Dentro da carruagem, ele e a velha senhora tentaram conter as pernas da menina, e se desdobraram para tirar os sapatos dos seus pés. Foram muitas tentativas. Os pés da menina não paravam de dançar, até mesmo quando estavam voltados para o ar eles se mexiam. Foi caótico, mas enfim, a velha e o cocheiro conseguiram tirar os sapatos dos pés da menina, e a carruagem seguiu seu destino.
            Chegando à casa da velha senhora, a menina foi advertida para não mais calçar aqueles sapatos. No dia seguinte, a velha foi novamente ao sapateiro com a menina, e comprou para ela um belo par de sapatos pretos. Mais uma semana se passou, e a menina sentia-se triste. Sentia falta dos bosques, não gostava dos sapatos pretos, e espiava os sapatos vermelhos no armário. No domingo seguinte, quando a velha chamou-a para irem à missa, a menina, sabendo que a velha tinha problema de vista, calçou novamente os sapatos vermelhos. Os olhares de reprovação durante a missa foram ainda mais fortes. Pessoas, ícones e estátuas reprovavam o comportamento da menina. Ao sair da igreja, o soldado de longa barba ruiva lá estava, encostado no portão. Ele piscou para a garota e falou "Não esqueça de ficar para o baile!". Ao ouvir essas palavras, a menina deu um rodopio e fez alguns passos de dança ali mesmo. Primeiro dançou uma gavota, depois uma csárdás, e em seguida, giros intensos de valsa, em intermináveis sucessões. A velha estava assombrada. A menina não parou de dançar. Ela se sentia livre, e não reparou que sua dança estava tornando-se desgovernada. Ela saiu descampado abaixo dançando, e o cocheiro não conseguiu apanhá-la dessa vez. 
            A garota chegou ao vilarejo vizinho dançando, e percebeu que estava longe demais de sua casa. Ela tentou virar-se para a esquerda, mas os sapatos a fizeram virar para a direita. Ela tentou ir em linha reta, mas os sapatos a fizeram dançar em círculos. A menina ficou apavorada. Os sapatinhos vermelhos conduziam seu corpo, e ela não tinha descanso. Ela passou dançando na frente de uma igreja, se agarrou com força à porta da igreja, enquanto seus pés tentavam levá-la. Ela pediu misericórdia. Ali apareceu um anjo, que disse a ela: "Não, não há misericórdia para você. Você desdenhou dos santos. Você irá dançar até que sua pele seque e sobre apenas suas vísceras. Você baterá três vezes na porta das casas, pedindo socorro, mas as pessoas, ao espiarem que é você quem bate à porta, não abrirão. Dancem sapatos vermelhos, vocês devem dançar!"  A menina desesperou-se e os sapatos foram conduzindo-a para dentro da floresta escura. Encostado em uma árvore, lá estava o soldado de barba ruiva. Ele disse: "Que belas sapatilhas!" e a menina apavorou-se ainda mais. Ela atravessou a floresta dançando. Dançava de noite e de dia, sob chuva e sob sol.
            Um dia, seus sapatos a levaram à floresta onde morava o carrasco do vilarejo, e assim que ela entrou dançando na casa dele, o machado pendurado na parede começou a tremer. O carrasco, ao vê-la, disse: "Você sabe quem eu sou, vá embora!" Mas a menina pediu a ele: "Corte os meus sapatos dos meus pés, por favor!" Ele então cortou fora as fivelas do sapato, mas eles não caíram. A menina tentou tirá-los. Enquanto dançava em cima de um pé, puxava o sapato do outro pé, mas era difícil, porque o pé que estava em sua mãos continuava dançando, sem parar. A menina tentou tirar o sapato do outro pé, mas aconteceu o mesmo. Desesperada então, a menina gritou para o carrasco: "Corte fora meus pés! Minha vida não vale nada mesmo!" e o carrasco assim o fez. Após o golpe do machado, os sapatinhos vermelhos com os pés da menina dentro saíram dançando pela floresta. A garota, decepada e caída no chão, ficou olhando os sapatos indo ao longe, até sumirem de vista. 
            O trágico fim dessa história faz sua interpretação começar de trás para frente: o que significa a perda dos pés? Podemos pensar que seja a perda da capacidade de movimento, da capacidade de seguir em frente. Ter os pés decepados é, simbolicamente, perder a base. Essa perda carrega consigo a perda da independência. Estés, quando analisa o conto em seu livro, desenvolve algumas interpretações. Na interpretação que se dá nas linhas abaixo, estou mesclando pontos de vista próprios às ideias de Estés.
            A pobreza da garota corresponde a uma condição de ser iniciante, de ter-se ainda muito a aprender, e muito a conquistar. Sua condição de órfã chama a atenção para uma personalidade que busca uma identidade própria, que não é guiada por modelos prontos, mas que tenta criar seu próprio estilo de ser. Seus sapatos feitos à mão são um primeiro resultado concreto de seus esforços criativos, de sua força expressiva, de sua compreensão do mundo. Representam uma materialização de seus conhecimentos, sendo fruto de sua inteligência livre, e de uma vida instintiva vibrante. O vermelho chama o sentido de vitalidade e desejo, mas também de alerta, pois o sangue dá vida quando corre dentro do corpo, e traz a morte quando jorra para fora do corpo. Fazer sapatos vermelhos na puberdade é aprender a respeito dessa polaridade do vermelho no momento em que se inicia a vida reprodutiva, quando o organismo feminino jovem tornou-se capaz de gestar em seu ventre. Seria uma condição ideal: iniciar-se na vida sensual feminina com a capacidade do discernimento acionada. Os sapatos vermelhos feitos à mão representam a necessidade de saber discernir o vermelho bom do vermelho destrutivo. A carruagem dourada seria a ofuscação do que tem real valor por aquilo que é valorizado socialmente em uma perspectiva de vida materialista. A idade avançada da senhora é a representação da experiência que vem com o tempo, dos aprendizados que só o tempo proporciona. No caso da senhora dessa história, a experiência de vida se deu apenas no mundo das convenções, e assim, a sabedoria que deveria guiar a menina foi deturpada. A promessa da senhora rica é uma cilada, é a tentação de trocar o risco pelo conforto inerte. Representa as garantias, a segurança proporcionada pelo convencional, uma alternativa ao medo do desconhecido. A casa da rica senhora é o cotidiano criativamente asséptico, orientado por valores materialistas vazios de originalidade. Representa modelos baseados no supérfluo, e uma educação castradora, que adestra instintos e ignora o singular. A queima dos sapatos feitos à mão é a destruição da persona criativa, é uma poda violenta na vida expressiva, no nascimento de uma autêntica individualidade. Os sapatos vermelhos do sapateiro representam a tentativa social de modelar o impulso singular padronizando-o; de tapear sua fome, e assim ofertar um substituto para o instinto criador. Representam a permissão para a manifestação de um falso caráter expressivo, o exótico adestrado e estéril. A ânsia de usar os sapatos vermelhos a qualquer custo representa a forte necessidade de reencontrar os instintos, a individualidade criativa que fora perdida. A igreja preconceituosa e o anjo inquisidor representam as instituições que trabalham na manutenção do status quo, de uma estrutura social que controla  e condena o desviante, o novo, a linha de fuga. O soldado é o diabo da história, e representa a bestialidade como ausência de prudência; a tentação de rebelar-se estupidamente; a vontade de divertir-se a qualquer custo. O prazer causado pelas primeiras danças dos sapatos vermelhos significa o deixar-se cegar ingenuamente por prazeres que na realidade são vampirescos, que sugam energias. A desvirtuada imitação de liberdade na qual se lança a garota é vazia, e a ilusão de preenchimento gera carências múltiplas. A dança final desgovernada é a própria entropia que reside em comportamentos viciosos autodestrutivos frutos da descontrolada necessidade de se saciar a sede por algo vibrante. Nesses comportamentos, a euforia revela-se torturante, e conduz ao fundo do poço.
            Diante da entropia da dança dos sapatos vermelhos, encontramos um sentido degenerativo para a dança. Isso me faz pensar que a conotação negativa da palavra 'dança' ("Xi, o fulano dançou.") pode estar atrelada a essa imagem secular, ou talvez milenar, do corpo cadavérico que deve dançar por condenação, castigo ou punição. Sem poder parar e sem repouso, sua dança é sua própria degradação.
         

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Dança macabra, mundo macabro

Isabelle Adjani em cena do filme Possession (1981), de Andrzej Żuławski.
         
            Na Idade Média europeia, por volta do século XV, e como ressonância da desolação causada pela peste negra, a universalidade da morte passou a ser uma alegoria presente em poesias, trovas, afrescos e dramatizações teatrais: era a dança macabra. Em registros históricos como gravuras e ilustrações, vemos esqueletos vivos de diversos tamanhos (em uma alusão a diferentes idades) vestidos por variados adereços. Eles estão em posturas dinâmicas, como se estivessem movendo-se ao som de alguma música. A dança macabra apontava que todos - ricos e pobres, felizardos e desafortunados - são iguais perante a morte; que todos terão o mesmo fim quando se depararem com a figura magra, alta, de face oculta, vestida no manto negro e portando uma grande foice. A todos a morte pegará a mão. Não haverá distinções perante ela.
            No filme O Sétimo Selo (1956), de Ingmar Bergman, encontramos no fim do enredo alguns personagens dispostos em uma fileira, de mãos dadas. Suas silhuetas são vistas cruzando o pico de um morro, sob forte vento e densas nuvens, em meio a uma tempestade. A fileira é conduzida pela morte, ecoando-se no cinema os sentidos da dança macabra. Nesse filme, Bergman abre portas para nossa imaginação visitar a maneira como a morte se fazia presente na cultura medieval; ele possibilita à nossa criatividade passear por hipotéticos detalhes visuais e sonoros.
            Fico imaginando como seriam as representações teatrais da dança macabra, e como elas deviam se mover sob os palcos nos olhos das crianças e dos velhos. Contudo, outras danças dessa mesma época impressionam-me ainda mais. Trata-se de manifestações culturais que foram consideradas satânicas pela igreja medieval - tidas como realísticas danças macabras - e que foram perseguidas: as danças ritualísticas femininas provenientes de diversas crenças religiosas ligadas à natureza. Pergunto-me como seriam essas danças. Como as mulheres moviam suas mãos para reverenciar a terra e o céu? Como ritmavam suas passadas? Para onde olhariam seus olhos? Como seria o fluxo de suas respirações?  
            Sobreviventes de culturas panteístas, esses rituais dançados carregavam traços de uma presença matriarcal. Ali havia o arquétipo da mulher ligada à terra, por compartilhar com ela o dom da fertilidade. O poder uterino de gerar causava respeito, e o sexo era o encontro natural intrínseco ao surgimento da vida. Os resquícios sociais dessas culturas estavam em dissonância aguda com a mentalidade católica medieval, e também, com a nova mentalidade racional que se prenunciava nas portas da Idade Moderna. A herança de dez séculos de Idade Média travestiu o poder do sexo e da gestação em uma atmosfera nefasta, pois foi de uma virgem que nasceu o Salvador. Para a igreja católica, que consistia na maior força política medieval, o sexo era sujeira, sensualidade era pecado, e a mulher era a porta de entrada para o mal penetrar no mundo.
            As práticas femininas dissidentes dos saberes matriarcais, como preparos de ervas e danças de adoração à terra, foram rotuladas pelo papado como heresias, e especificamente, como bruxaria, tendo sido perseguidas por tribunais seculares, locais e  religiosos, como a Santa Inquisição. Tais 'bruxas' passaram a ser caçadas. A igreja difundia que eram mulheres ligadas a forças da escuridão, hereges da sensualidade entregues ao pecado original; que tinham encontros com o Diabo, e que com ele aprendiam a gozar no sexo, a ter orgasmos - o sinal da danação. Na mentalidade obscura da época, apenas a morte no fogo poderia limpar essas almas da presença do mal. 
            Rose Marie Muraro, em seu impactante livro Textos da Fogueira (Editora Letraviva, 2000), discorre sobre o tema da satanização da sensualidade no mito da bruxa, e clarifica o entendimento do processo de destruição da emancipação feminina por parte do poder medieval, o qual atuou pelos meios da ardilosa caça às bruxas. Com a leitura do livro, fica claro que o que ocorreu nesse contexto foi algo extremamente maior do que a censura violenta a rituais considerados pagãos e taxados de diabólicos. Isso foi apenas o pavio de uma grande bomba. O que ocorreu na realidade foi uma destruição estratégica do poder feminino, o qual estava crescendo e espalhando-se socialmente. Mulheres estavam no governo de propriedades rurais em várias localidades, porque seus maridos, filhos e servos haviam partido para a derrocada das Cruzadas, e nunca mais voltaram. Gerações de mulheres se tornaram administradoras de feudos, se fizeram as principais educadoras das crianças e dos jovens. Dentre elas surgiram poetisas, pensadoras. Essas terras que encontravam-se sob o governo de mulheres foram para a mira de donos de grandes propriedades e representantes de poder da igreja, que queriam anexá-las a seus territórios. Desse modo, mulheres de variadas idades foram dizimadas nas fogueiras da caça às bruxas, durante quatro séculos. Foram milhares ou até milhões de vítimas, de acordo com os dados apontados por Muraro. Tal matança estava amparada no argumento católico da culpa feminina por ter protagonizado o pecado original.
            O Martelo das Feiticeiras (traduzido para o português por Muraro) era o nome do tratado de condenação utilizado pelos juízes dos tribunais de caça às bruxas. Por ele se decretavam as sentenças. Tem lá escrito que a simples presença de uma dessas mulheres podia enlouquecer os homens e influenciar as mulheres para a perdição, podia hipnotizar e amaldiçoar. A bruxa devia ser trazida ao julgamento nua e amarrada, pois suas roupas escondiam objetos de bruxaria e um simples movimento do seu corpo podia enfeitiçar. Seu cabelo devia ser todo cortado, pois continha encantos malignos. Sua boca devia ser amordaçada, porque sua voz era maldita e ela proclamava palavras satânicas. Os tribunais torturaram cruelmente essas 'bruxas'. Quando os julgamentos eram feitos por tribunais religiosos, após as torturas, as rés eram entregues às cortes locais ou seculares, para que fosse decretada a sentença da fogueira, pois a igreja, como instituição que se proclamava casta, se abstinha de matar. No maravilhoso filme O Nome da Rosa (1986) dirigido por Jean-Jacques Annaud, e baseado no livro homônimo de Umberto Eco, encontramos uma jovem 'bruxa' à beira do fogo. O filme é uma ótima oportunidade de viajar por esse momento tenebroso da época medieval. Também em O Sétimo Selo, Bergman nos apresenta uma jovem alucinada prestes a ser queimada na fogueira.
           Paro para pensar na figura que ficou para nós como memória de todo esse mito da bruxa - a velha malvada, corcunda e desgrenhada, aquela que come criancinhas, que cozinha serpentes e sapos, que faz porções de magia. Procuro representantes legítimas desse perfil: penso na Baba Iaga, personagem de inúmeros contos medievais, e que hoje se encontra até mesmo em cartoons atuais. Mas a bruxa alvo da inquisição muitas vezes era bonita e jovem.
            Pensando nessa segunda representante, chego a uma versão contemporânea: a personagem de Isabelle Adjani no filme Possession, de 1981, dirigido por Andrzej Żuławski. Em uma rica cena desse filme, a personagem de Adjani, quando se encontra só no corredor de uma estação de metrô, é possuída pelas forças demoníacas emanadas pela criatura horrenda com a qual se relacionava, o que culmina em uma macabra dança, uma autêntica dança de possessão diabólica. O que se passa, é que a personagem, minutos antes, havia ido a uma igreja, e encarado por alguns instantes a estátua de Jesus Cristo crucificado. Manteve os olhos fixos na face da estátua. Durante essa contemplação, gemeu e grunhiu baixinho. Ao deixar o interior da igreja, após descer a escadaria e chegar à rua, começa a rir descontroladamente. Ao entrar no túnel da estação de metrô, com o rosto sério e assustado, é tomada por movimentos corporais espasmódicos, de um fluxo pulsante e percurso desgarrado, com sacudidas de braços e tronco, e tensos arqueamentos de coluna.
            A dançada possessão de Adjani me deixou impressionada. Vi uma poesia visual belamente tenebrosa na cena. Uma dança como eu nunca tinha visto. Pensando na caça às bruxas da Idade Média, posso conceber Adjani nesse filme como uma espécie de vingadora do passado: ela sim é amante da maldade e de fato transa com o diabo. Tudo ao seu redor desmorona, é dilacerado, sofre, sangra. Uma autêntica bruxa das trevas que escapou do fogo da Inquisição.
            Diferentemente desse personagem de Adjani, as 'bruxas' da Alta Idade Média não escaparam das fogueiras. Tiveram o azar de estarem no lugar e no tempo errados. Junto a elas foram transformadas em cinzas inúmeras danças, inúmeras sabedorias. Dentre essas mulheres, além das que praticavam conhecimentos e rituais de origens conflitantes com o catolicismo, havia muitas que foram condenadas apenas por serem lideranças sociais, ou por terem conhecimentos que ameaçavam o engessamento psicológico implantado pela igreja. Tantas outras foram queimadas por terem se comportado em algum momento de uma maneira destoante da regra social que impunha uma falsa castidade extrema ao gênero feminino. Suspeitas de adultério também eram conduzidas para o fogo. Segundo Muraro, como mostram registros históricos, mulheres foram entregues pelos próprios maridos aos tribunais de caça às bruxas, pelo motivo de, na intimidade da cama desses matrimônios, durante o ato sexual, os esposos terem detectado a presença do prazer nos olhos de suas esposas. O sexo não podia ser desfrutado pelo gênero feminino. À mulher, apenas a cruz do pecado original. O gozo era sintoma de encontros secretos com Satã, e devia ser punido.
            Diante de tanto absurdo, de tanta mutilação da sensualidade, não espanta nem um pouco a ideia de que algumas mulheres pudessem ser repentinamente arrebatadas por catarses corporais, por crises nervosas, ou tomadas por movimentos convulsivos, tal qual danças desgovernadas. Porque mais macabro do que qualquer dança macabra, era esse mundo onde essas mulheres viveram. Fica o link para uma entrevista com Muraro (realizada no ano de 2000 por Nádia Timm):
http://www.nadiatimm.com/nt01/index.php?option=com_content&view=article&id=389:o-poder-do-prazer&catid=42:entrevistas&Itemid=61

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Com escuta e com afeto: uma música gestual para um dia


Cena final do filme Luzes da Cidade, de 1931.


            Imagino um dia diferente: comunicar-me apenas corporalmente, pela linguagem dos gestos. Entendendo gesto como plasticidade corporal de manifestação visual, e dentro disso, com um sentido amplo: os gestos dos olhos (os segredos do olhar), os gestos da coluna (mesmo que sutis), os gestos dos dedos das mãos (os dedos e suas danças), os gestos dos joelhos, dos pés...
            O cinema mudo explorou esse mundo gestual. Um olhar de Chaplin falou mais que um texto comprido. A dança bebeu na pantomima. As escalas gestuais de François Delsarte inspiraram precursores da dança moderna. O que o gesto pode nos ensinar? Ele pode ser furioso ou gentil, pode ser nítido ou confuso. Pode adormecer, pode acordar. Como estar atento para escutá-lo? Será que meu inconsciente pode falar por mim por meio dos meus gestos? O que meus gestos podem me ensinar a respeito de mim mesma? E nos meus sonhos noturnos, o que querem de mim meus gestos? O corpo fala é o título do clássico livro de Pierre Weil e Roland Tompako.
            Os monges que fazem voto de silêncio, me parece, vivem também uma economia de gestos - o silêncio dos gestos. Ao contrário desse admirável silêncio místico gestual, imagino como seria uma canção gestual cotidiana criada espontaneamente durante todo o percurso de um dia especial. Se quero expressar um 'sim!', como 'digo'? Se quero explicar que estou pensando, como faço? Se quero comunicar que aquela árvore é linda, o que se passa? E se emendo um gesto no outro, criando um refrão?
            Admiremos um bebê, seu corpo, seus gestos: como ele todo é expressivo. Em um recém nascido, as caretas que ele constantemente realiza em seu rosto amassado nos mostram que o gesto vem de dentro. Ele sente um desconforto físico e sua face reage, exterioriza. Ele se comprime, torce a boca, movimenta o braço, aperta os olhos. Mas ele também reage gestualmente ao que vem de fora, e isso nos faz ver que o gesto também nasce no outro. Lembro do filme A Guerra do Fogo, dirigido por Jean-Jacques Annaud. Homens pré-históricos precisam partir à procura do fogo, porque não sabem fazê-lo manualmente. Não existe uma língua em cena, mas existe uma linguagem de sons e de gestos. O raciocínio e as sensações estão lá: nas sobrancelhas, nos lábios, nos ombros, nas pernas, no pescoço dos personagens. Eles agacham, correm, se paralisam. Sentem medo, admiração, alegria. As tentativas de entender a incompreensível fala de outra tribo se refletem em seus rostos, que se modificam expressivamente, em constante movimento. Estranha atração e admiração pelo mundo que surge a partir daquele que é diferente. A inteligência vai brotando da afeição.
            Para a minha música gestual de um dia, eu poderia me inspirar no homem pré-histórico que existe em mim, no bebê que existe em mim, na dançarina que existe em mim. Tudo ficaria imbuído de uma atmosfera de novidade. Você se mexe, eu escuto. Eu me movo, você me ouve. Nós iríamos conversar sem palavras. Poderíamos nos tocar. Talvez, a necessidade de estar atento para compreender a minha mensagem aumente em você sua receptividade e sua perspicácia. Talvez, reparar como você hesita, ao procurar uma resposta, e como expande o peito e inclina a cabeça, aumente em mim minha capacidade de transitar afetos.
           

domingo, 26 de maio de 2013

Dança, feminino, status e discriminação



IMAGEM: Egyptische danseres in een tent, met muzikanten en toeschouwers (1863) - Dançarina egípcia em uma tenda, com músicos e espectadores. CRIADOR: Willem de Famars Testas. FONTE: www.rijksmuseum.nl


            Escrevo este ensaio pensando na porção transgressora da dança, a qual se dá, em boa parte, devido à sua intrínseca sensualidade. Por ser naturalmente sensual, a dança percorre um trajeto de impacto social que a faz ser vista, em um extremo, como manifestação do sagrado, enquanto resplandecência da carne, e no outro, como prelúdio à luxúria, condenaçãoMover os punhos espiraladamente, circular o quadril em volta do seu centro, desenhar curvas no ar com as costelas, deixar o pescoço se esticar para trás e puxar uma grande inclinação da coluna, tudo isso é fazer rodar a correia das sensações, e não apenas em quem se mexe, mas também em quem assiste. Penso no caso específico da mulher. Nestas questões relacionadas ao gênero feminino. 
            No Brasil, somos acostumados a ver mulheres rebolando, peles à mostra, seios tremendo, glúteos e pernas. No mundo inteiro sabe-se da existência do carnaval brasileiro e seus corpos quase nus. Pelas ruas, silhuetas são visíveis. Nos programas de auditório, moças dançam balançando a pelve até o chão. Adentra no Brasil a moda da pole dance. Em grandes cidades academias de ginástica passam a oferecer essa modalidade de dança, onde se deve aprender a rodopiar em volta de um mastro, a la stripper. Dentro dessa erotização dos movimentos corporais nos corpos femininos, muitas questões se encontram. Por um lado, há o fato de que a liberdade de expressão é legítima. Por outro, existe a problemática da objetificação da mulher, pois para muitos homens, ela se torna, de modo generalizado, uma espécie de mercadoria na estante, exposta para escolha e consumo. 
            O corpo da mulher brasileira e sua dança vivem soltos, mas não de modo hegemônico, pois em algumas instâncias culturais encontramos a intolerância para com a sensualidade da dança, e a discriminação da mulher que se revela livremente sensual. Em tempos passados, esse preconceito era maior. As dançarinas de cabaré das primeiras décadas do século XX muitas vezes tinham suas profissões confundidas com a prostituição, apesar de serem coisas distintas. As atrizes que fizeram parte do movimento precursor do teatro no Brasil também eram rotuladas pela mentalidade conservadora como mulheres da vida, ou damas vulgares. 
            Em países de culturas ainda estruturalmente machistas e religiosamente fundamentalistas, tais intolerância e discriminação são bem mais densas, estando arraigadas de modo generalizado na sociedade.  Na cultura árabe tradicional, por exemplo, os corpos das mulheres são cobertos por panos, embalados por tecidos e ocultação.  Quando nesse contexto a pele feminina encontra-se livre, navegando em ondas sinuosas de movimento, arma-se uma imagem concessivamente nefasta, que só pode ser aceita socialmente em círculos fechados, próprios do mundo masculino. O cavalheiro pode apreciar essa transgressão. A dama não. A mulher que se presta à função de dançarina é considerada uma mulher diferente. Está moralmente abaixo da boa esposa-mãe, e deve ser tratada socialmente de modo diferenciado. A ela é reservado um lugar peculiar. Ela não pertence ao pudor, mas também não exerce a venda do sexo. Ela a figura que propicia a necessária desmedida moderada dos sentidos corpóreos, o voyeurismo, a excitação controlada. Para ela é difícil casar-se, pois não é considerada uma pretendente apropriada. Em troca, a dançarina circula pelo mundo íntimo masculino, recebe presentes, cortesias. Pode conquistar certo status, possui uma específica mobilidade. Ela é, ao mesmo tempo, a exceção para a liberdade e a escória da dignidade
            Isso me faz lembrar a época da inquisição, na Idade Média, e seu pensamento católico corporalmente opressivo, no qual o corpo é prisão da alma, a mulher é a vilã bíblica e a sensualidade é pecado. Nessa conjuntura, cala-se a dança feminina. A mulher só deveria mover-se ritmadamente durante os passos de um comportado bailado, e nas ocasiões premeditadas. No entanto, pensando que o impulso expressivo muitas vezes nasce do deserto, visualizo uma moça vestida em uma túnica branca, sob a luz de um candil, na intimidade do seu pequeno quarto. Ela acabou de se banhar em uma bacia e prepara-se para dormir. Sem suas pesadas roupas diurnas ela se sente mais leve. Se aproxima da parede de pedras onde no alto há uma estreita janela, e observa o brilho da lua. Ela pressente a liberdade. Sente vontade de mover seu corpo. Inspira o ar e o retém. Vira-se para o interior do quarto e solta-se no espaço. Moral multitemporal da história: a dança da mulher é um canto da força feminina. Ela pode ser mal-compreendida e reprimida, mas não pode ser impedida.

segunda-feira, 11 de março de 2013

Dança-me ou devoro-te



Criador: Gustave Moreau (1826-1898). 
Fonte: http://www.metmuseum.org
            Indagar-se sobre o que há de existencial no dançar é indagar-se a respeito de um mistério devastadoramente grande. O físico Marcelo Gleiser, em seu livro A dança do Universo, dentre outras coisas, narra mitos de criação do mundo. E o movimento lá está como principal personagem dos enredos. Verbos descrevendo ações cosmogônicas cheias de movimento: gerar, criar, mover, surgir, separar, moldar, transformar, organizar, dançar. O deus hindu Xiva, dançando cria e dançando destrói o que outrora fora criado em um Universo que sempre existiu: a noite essencial de Brama. Com seus movimentos faz morrer e faz surgir. Entropia e sintropia. Para Gleiser, a dança de Xiva "[...] simboliza tudo que é cíclico no Universo, incluindo sua própria evolução". O ciclo nascimento-morte ocasionado por Xiva tudo abarca: do mundo aos corpos humanos, e "simboliza não só a natureza rítmica do tempo, como também a natureza efêmera da vida". 
            A ciência, ao desalojar os mitos do lugar explicativo, pretende elucidar os enigmas da origem do Universo descrevendo trajetórias, nascimento e morte de astros celestes por meio de cálculos matemáticos. O movimento desses astros e o movimento que existe neles é o foco da questão.
            Havemos de conseguir estar em cima desta terra aparentemente estática sem esquecer que abaixo dela mexem raízes; que em seu núcleo o magma revira-se em temperaturas exorbitantes; que fora dela estrelas se deslocam a todo instante; que circulamos o Sol em uma velocidade alucinante; e que todo o universo é dinâmico. "Dança-me!" é o que nos diz o sussurro do vento, o uivo da lua, o fôlego da relva. Se paramos para escutá-los, percebemos que nada é mais legítimo que o espaço da liberdade. Amar o chão onde se desliza, o ar cortado em um salto, a visão desfocada que se tem durante um giro. A singularidade e o valor da vida de uma pessoa muito tem a ver com o modo como o mistério do existir é por ela encarado; com a maneira peculiar pela qual ela dança sua existência, sendo movimento. Isso já dizia Roger Garaudy em sua obra Dançar a vida, título que consiste em uma bela metáfora para a proposta de assumir uma existência sensível. Mais do que decifrar a vida, precisamos dançá-la, pois não será dançando-a que iremos decifrá-la?
            O poder expressivo da dança carrega o ato da criação. Dança-se, e algo nasce. Dançar gera transformação. Quando se dança adentra-se uma relação diferente com o tempo, relativiza-se a ampulheta. Os poros da nossa atemporalidade se dilatam, a noção dos minutos e das horas se altera, mergulhamos para dentro. Mas não por isso dançar significa fugir ou esconder-se em si mesmo. Não faz o menor sentido conceber a viagem interior da dança como uma subjetivação egocêntrica, já que a realidade não é apenas externa, mas também interna; já que nossos próprios mistérios nos ensinam a entender um pouco desse mundo.
            Além de levar para dentro, a dança leva para fora, para o outro, para o encontro. Talvez ao dançar, o deus Xiva lance ao longe infinitas sementes para tornar fértil o nada, para semear o vácuo ao seu redor. Ele contempla a escuridão enquanto dança, e a ilumina. Na vida cotidiana deveríamos nos lembrar dele. A rotina passa apressada e tromba na dança. Nossos movimentos outrora libertados ficam desorientados e cessam. A pressa normatiza a dinâmica do corpo. A tristeza descolore o cromatismo do olhar. O medo petrifica a ação. A entropia cresce e a sintropia desfalece. Viver é ambivalência. Perguntas ou respostas? Mover-se ou cristalizar-se? Poderemos olhar para trás e sorrir, se esquecermos de dançar? De girar sobre o vácuo? Se deixarmos de contemplar a escuridão?
           Nunca se soube de uma esfinge que não parecesse ameaçadora, que de tão fantástica e obscura não causasse medo, que não lançasse um enigma, que não fosse mistério. No entanto, a esfinge traz a possibilidade do salto da consciência. Exige um envolvimento absoluto. Encontrá-la é deparar-se com o absurdo; encará-lo de frente, fixar os olhos nos seus. A esfinge abre a boca e proclama: "Dança-me, ou devoro-te".



sexta-feira, 8 de março de 2013

A universalidade da dança

The bear dance (A dança do urso) (1845). CriadorGeorge Catlin (1796-1872). Fonte: NYPL Digital Gallery


            O universo da dança é fascinante. Quando paramos para observar que ela está em todos os lugares e em todos os tempos, percebemos a força e a importância social que ela tem. Manifestação expressiva das possibilidades plásticas e rítmicas do movimento do corpo, a dança parece ter nascido com o homem, ou mesmo antes dele, evolutivamente falando; parece ter nascido com a vida, com o movimento.
            Em relação às diversas culturas da humanidade, qualquer busca simples na Web, com expressões como 'dança egípcia', 'dança medieval', 'dança aborígene', traz resultados instigantes, levando-nos a um mosaico que parece ser infinito. As tradições culturais mantêm vivas danças antigas, passadas de pais para filhos, remontando a um início muitas vezes onírico, atrelado a visões e sonhos noturnos. Houve danças para chamar espíritos, danças para seduzir e matar, danças para proteger, danças para treinar a guerra, danças para transformar, danças para expurgar os demônios, danças para amar, danças para morrer, para celebrar a chegada da primavera, para reverenciar a noite, para formalizar acordos de paz.
            A dança está presente em diversas mitologias, como um dom especial concedido pelos deuses. Nos salões aristocráticos europeus, a dança era uma etiqueta firmemente adestrada, que proporcionava interação social. Na América do norte, nas décadas iniciais do século XX, a dança foxtrot era um dos escassos momentos de mistura entre brancos e negros. Nas civilizações indígenas, a dança nas florestas, feita em volta da fogueira, reunia os homens em rituais de magia. Na cultura indiana a dança conta histórias por meio de métricas e mudras, guardando conhecimentos milenares. 
            Uma das coisas mais bonitas que podemos fazer por uma criança é estimular sua dança, para que ela desenvolva essa possibilidade de descontração e plenitude.


Elisa Teixeira de Souza, 09/02/2013